Fixar valor mínimo de pedido em plataforma de delivery é legal

Apesar de no passado ter-se considerado existir um possível conflito entre a defesa do consumidor e a livre iniciativa (CF, artigo 170, incisos V e IV e § único), há tempos fixou-se o entendimento de que tais princípios podem e devem coexistir.

A partir de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico, tem-se que a defesa dos direitos do consumidor não pode ser utilizada como razão para indistintamente interferir na atividade empresarial. A fórmula, ao menos em teoria, é simples: é preciso equilibrar esses dois vetores constitucionais, de modo a, de um lado, não coibir e, em verdade, estimular as iniciativas empresariais, sem que, de outro, autorizem-se abusos contra o consumidor.

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Embora essa seja uma discussão antiga, a evolução tecnológica dos últimos anos trouxe uma gama enorme de situações práticas antes inexistentes, criando novos debates a respeito da possibilidade de, em defesa do consumidor, serem impostas medidas que interferem no modo como a atividade empresarial é exercida.

Nesse contexto, pretende-se analisar especificamente o fundamento do valor mínimo para a realização de um pedido – por meio de plataformas digitais que fazem intermediação entre estabelecimentos comerciais e o cliente – considerando os conceitos de venda casada e de limitação quantitativa, classificados como práticas abusivas (CDC, artigo 39, inciso I).

A doutrina defende que há venda casada quando (i) o fornecedor condiciona a venda de determinado produto à aquisição de outro,[1] e quando, (ii) valendo-se de sua condição de superioridade econômica ou técnica, o fornecedor tenta interferir no poder de escolha do consumidor.

Classificando a vinculação de produtos como prática abusiva, o legislador buscou proteger a liberdade de escolha do consumidor.

Para o que é pertinente à presente reflexão, entendemos que a fixação de um valor mínimo para a realização de um pedido não pode ser friamente interpretada como uma “vinculação de produtos”.

No caso dos serviços de delivery, mesmo com a fixação de um valor mínimo, o consumidor continua tendo autonomia para escolher adquirir o produto

presencialmente no estabelecimento comercial,
por meio de um serviço de entrega,
em determinado estabelecimento, ultrapassando o preço mínimo fixado; e/ou
em outro estabelecimento que não estipule o valor mínimo para o pedido. A relação entre todas essas alternativas é a de que o consumidor permanece com o poder de escolha, pois não há, por parte do fornecedor, condicionamento para compra de determinado produto de seu portfólio.

Ainda que para alguns essa prática possa ser interpretada como uma restrição à liberdade do consumidor, não se pode perder de vista que a proteção aos direitos do consumidor não se sobrepõe indistintamente à livre iniciativa e liberdade econômica. Justamente por reconhecer a necessidade de harmonizar a defesa do consumidor com a atividade empresarial, o próprio legislador previu no artigo 39, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor que a existência de justa causa afasta a ocorrência de prática abusiva.

É essa a situação analisada: o valor mínimo para realização de um pedido por delivery tem justa causa econômica, já que seu escopo é evitar que o estabelecimento comercial seja obrigado a operar com prejuízo desde a origem. Afinal, a comercialização dos produtos por meio de plataformas digitais, justamente por gerar custos adicionais ao estabelecimento comercial, “se justifica apenas a partir de um certo valor”.[2]

Ou seja, a fixação de um valor mínimo para o pedido tem a finalidade de cobrir ao menos o custo operacional (como, por exemplo, com embalagens descartáveis e com a implementação de sistema para controle dos pedidos realizados via plataforma etc.) relativo (i) à oferta do produto e (ii) à viabilização de sua entrega por intermédio de plataformas.

A lógica econômica intrínseca ao mecanismo do preço mínimo parece clara: os comerciantes atuariam em evidente prejuízo se fosse autorizado ao consumidor selecionar um único produto, de custo baixo, já que a margem de lucro por trás dessa singela venda jamais teria o condão de cobrir o custo inicial mínimo para viabilizar a oferta do produto e sua entrega (direcionamento) via plataforma.

Não há dúvidas sobre a positiva revolução que tais serviços trouxeram para toda a sociedade. A partir deles, os consumidores potencializaram, de forma notável, seu direito de escolher produtos, com ganhos significativos tanto no que tange à possibilidade de pesquisar – com facilidade – a melhor oferta de preço de determinado item, além da enorme comodidade de receber os produtos no local desejado (com uma rapidez até então sem precedentes).

Do lado do mercado e dos comerciantes, a revolução é igualmente positiva. Por meio dessas plataformas, expandiu-se o universo de potenciais consumidores, viabilizando o contato com um público até então inacessível, seja por força da impossibilidade de deslocamento até os estabelecimentos, seja pela dificuldade ou inconveniência de se vencer maiores distâncias sem o auxílio do delivery.

O sucesso é tão grande que, atualmente, uma parcela significativa desses estabelecimentos gera a maior parte de seu faturamento a partir dos negócios intermediados por essas ferramentas virtuais. Muitos, inclusive, verdadeiramente dependem delas para sua própria sobrevivência.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já rechaçou a tese de que a fixação de valor mínimo configuraria prática abusiva contra o consumidor. Em julgamento realizado em 2020, reconheceu-se o direito de o empreendedor “eleger um valor mínimo que repute adequado para remunerar o serviço colocado à disposição do público, a fim de remunerar um custo inicial mínimo (…), inexistindo imposição ou condicionamento da aquisição do serviço a limites quantitativos sem justa causa”, atestando ainda que a defesa do consumidor não pode “ser utilizada como fundamento para justamente fulminar a livre iniciativa – a qual possui como núcleo central, a livre estipulação de preço pelo empreendedor”.[3]

É possível concluir, portanto, que a fixação de um valor mínimo não se enquadra nas práticas abusivas vedadas pelo artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor, sendo, em verdade, um direito garantido ao empreendedor pela ordem econômica constitucional (CF, artigo 170, caput, inciso IV e parágrafo único).

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Fixada a premissa de que o valor mínimo do pedido é um fator relevante da equação econômico-financeira do mercado de entrega, fica claro que impedir tal prática, além de interferir na liberdade econômica do empreendedor, torna a atividade empresarial economicamente impossível.

Na realidade, a aplicação indistinta da legislação consumerista à prática ora analisada teria o condão de prejudicar não só os estabelecimentos comerciais como os próprios consumidores.

Se a prática for equivocadamente classificada como abusiva, ter-se-á um negativo “efeito cascata”, com estabelecimentos comerciais sendo obrigados a

aumentar o preço do seu produto: para cobrir o custo operacional mínimo da atividade;
retirar os itens de menor valor do portfólio (via de regra, são produtos acessórios); ou ainda
encerrar suas atividades ou a possibilidade de entrega, por não ser economicamente viável, em detrimento dos consumidores que passariam a ter menos opções para exercer sua escolha.

Conclui-se, pois, que a fixação pelos estabelecimentos comerciais de um valor mínimo para pedidos não configura prática abusiva e não viola as regras do CDC. Além de não se enquadrar no conceito de venda casada e de não criar limites quantitativos, é evidente que há justa causa econômica para sua fixação.

[1]  Claudia Lima Marques, Antonio Herman Benjamin e Bruno Miragem, Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, São Paulo, RT, 2022, RL-1.13.

[2] Fábio Ulhoa Coelho, Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, São Paulo, Saraiva, 1991, p. 167.

[3] STJ, 3ª T., REsp n. 1.855.136-SE, j. 15.12.20, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe 18.12.20.

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