Cresce no mundo afora o número de diagnósticos de Transtorno do Espectro Autista (F. 84.0). A última pesquisa a respeito nos EUA apontou que em 2020 uma em cada 36 crianças são portadoras do TEA, um acréscimo de 22% nos últimos dois anos (BASSETE, 2023).
Mas é nos diagnósticos tardios que se encontra a atenção. No Brasil ganhou notoriedade o caso da atriz Letícia Sabatella que foi diagnosticada com TEA aos 52 anos. A apresentadora definiu a experiência como “libertadora” (FANTÁSTICO, 2023).
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A luta pelo reconhecimento de uma condição humana, não uma doença (DONVAND e ZUCKER, 2017, p. 551) enfrentou e enfrenta um obstáculo que vem desde as origens do TEA.
Em um país que tem a dignidade humana como fundamento (Art. 1º, Inc. IV da CF/88), o que impõe o reconhecimento do ser humano em sua individualidade, em seu valor intrínseco, parece pouco trabalhada a relação que um diagnóstico ainda que tardio pode ter com o pleno desenvolvimento da pessoa.
A luta por reconhecimento e pertencimento faz parte do contexto constitucional brasileiro, pretendo esse breve artigo demonstrar como que a dignidade da pessoa humana como reconhecimento pode ajudar a entender melhor a luta autista por respeito e consideração.
Dignidade humana como reconhecimento e TEA
O princípio da dignidade humana carece muitas vezes de cuidado técnico. Muito utilizado como argumento de luva de maquinista em processos compensatórios, ele possui uma densidade diferente dos demais, o sujeitando a uma amplíssima gama de hipóteses de aplicação, porém, há excertos que denotam o verdadeiro significado do metaprincípio.
Segundo a Corte Constitucional Canadense:
A dignidade humana é atingida pelo tratamento injusto baseado em traços pessoais e circunstâncias que não sejam relacionadas às necessidades, capacidades e méritos do indivíduo. (…) A dignidade humana é atingida quando indivíduos ou grupos são marginalizados, ignorados ou desvalorizados, e é promovida quando as leis reconhecem o espaço pleno de todos os indivíduos e grupos dentro da sociedade canadense.
Em outras palavras, um adequado reconhecimento dos predicativos do sujeito é vital (SARMENTO, p. 241), já que:
A falta de reconhecimento oprime, instaura hierarquias, frustra a autonomia e causa sofrimento. Vícios no reconhecimento têm também reflexos diretos nas relações econômicas e de poder presentes na sociedade, pois “fecham portas”, criando embaraços ao acesso a posições importantes na sociedade para as pessoas estigmatizadas (SARMENTO, p. 242),
Nesse contexto, casos como o de Leticia Sabatella revelam um inadequado cerceamento da dignidade do humano autista. O diagnóstico/reconhecimento ainda que tardio da condição neurodiversa se mostra capaz de trazer a lume uma nova identidade, e por conseguinte, um novo viver.
Ora, a concepção original de Kanner sobre o autismo (1942) é reducionista, e tem como efeito “excluir aqueles que não se ajustavam em perfeição as categorias” (COHEN, PAUL e VOLKMAR, 2005, p. 599), o que “eliminava muita gente que precisava de ajuda” (DONVAND e ZUCKER, 2017, p. 339)
Os cidadãos neurodiversos antes tratados como heterodoxos passam a ter um sentimento de maior compreensão sobre si próprio, o que leva invariavelmente ao acesso a mecanismos de discriminação positiva e a um melhor tratamento de sua condição.
Vale dizer, um olhar sobre o outro que supre do sujeito uma parte de sua particularidade acaba por o estigmatizar como um outsider social inexplicável. A justificação, por sua vez, leva a uma realização plena de sua capacidade pela aceitação de sua diversidade.
Exsurge como relevante a acepção de Lorna Wing (1988, p. 92) de que o autismo é afeto a um “espectro” que comporta diferentes formas de ser, jamais estáticas e únicas.
Não é irrazoável concluir que se radica nessa interpretação a expansão ainda que tardia da comunidade autista. Por ela, busca-se englobar pessoas que estavam “quase fora do alvo” (DONVAND e ZUCKER, 2017, p. 337), os levando aos adequados tratamentos e autoconhecimentos.
De mais a mais, o olhar do técnico sobre o pretenso autista não pode ser enviesado por uma relação de sujeito-objeto que somente serve para a confirmação de sua perspectiva clínica previamente estabelecida. Deve o técnico estar preocupado com a condição de sujeito única do paciente. Segundo Emmanuel Lévinas (1997, p. 27):
[…] Outrem não é primeiro objeto de compreensão e, depois, interlocutor. As duas relações confundem-se. Dito de outra forma, da compreensão de outrem é inseparável sua invocação. Compreender uma pessoa é já falar-lhe. […]. Pôr a existência de outrem, deixando-a ser, é já ter aceito essa existência, tê-la tomado em consideração. […]
Ademais, a luta autista perpassa não somente o devido reconhecimento pelo social de sua condição, mas também a busca pelo respeito. A luz da dignidade humana, deve-se respeitar as identidades singulares (FERNANDES, 2020, p. 344) dos sujeitos.
Em conclusão, o adequado reconhecimento da condição de autista prospera a dignidade do sujeito ao sujeita-lo a uma compreensão individual sobre si próprio valiosa, que se bem trabalhada, pode levar a superação dos impasses a que os portadores do transtorno estão sujeitos, seja em razão de acesso a benesses legais ou terapêuticas.
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REFERÊNCIAS
BASSETE, Fernanda. UOL. Viva bem. Diagnóstico de autismo aumenta 22% em dois anos nos EUA; o que explica? Disponível em: <https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2023/04/23/diagnostico-de-autismo-aumenta-22-em-dois-anos-nos-eua-o-que-explica.htm?cmpid=copiaecola> Acesso em 18/10/2023.
BATISTA, C., & BOSA, C. Autismo e educação. Porto Alegre, RS: Artes Médicas. 2002.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em 18/10/2023.
CANADA. Suprema Corte do Canadá. Law v. Canada. (Minister of Employment and Immigration). Tradução nossa. 1999. 1 SCr 497.
COHEN, Donald. Handbook of Autism and Pervasive Developmental Disorders, Diagnosis, Development Neurobiology and Behavior. Haboken, tradução nossa. 2005.
DONVAND, J., & ZUCKER, C. Outra sintonia: a história do autismo. Trad. L. A. de Araújo, trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letra. Versão e-reaver. 2017.
FANTÁSTICO. Letícia Sabatella fala sobre o diagnóstico tardio de Transtorno do Espectro Autista, aos 52 anos: ‘sensação libertadora’ Disponível em: <https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2023/09/17/leticia-sabatella-fala-sobre-o-diagnostico-tardio-de-transtorno-do-espectro-autista-aos-52-anos-sensacao-libertadora.ghtml> Acesso em 18/10/2023.
GONÇALVES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. rev., atual, e ampl. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2020.
KANNER, L. Autistic disturbances of affective contact. Nervous Child. 1943. Tradução nossa. Disponível em < http://www.th-hoffmann.eu/archiv/kanner/kanner.1943.pdf> Acesso em 14/10/2023.
LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós – ensaios sobre a alteridade. Tradução de Pergentino Pivatto (Coord.). Petrópolis: Vozes, 1997
SARMENTO. Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
SHEFFER, Edith. Crianças de Asperger: As origens do autismo na Viena nazista. Trad. BONRRUQUER, A. Rio de janeiro: Record. 2019.
WING, Lorna. The Continuum of Autistic Characteristcs. In: Eric Schloper e Hary Mesibov (Orgs.) Diagnosis and Assessment in Autism. Nova York: Plenum. 1988.