O debate sobre a função das licitações públicas tem se intensificado no Brasil, especialmente após a edição da Lei 14.133/2021 e a consolidação da Lei 13.303/2016 (Lei das Estatais). De um lado, perde força a visão clássica, que enxerga a licitação como mero instrumento de busca pela proposta mais vantajosa em termos econômicos. De outro, é fortalecida a compreensão de que o poder de compra do Estado pode – e deve – ser manejado como instrumento de promoção de políticas públicas, sobretudo em matéria de inclusão social e sustentabilidade.
Nesse contexto, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) avaliou ser juridicamente viável usar as licitações e contratos para promover ações afirmativas voltadas à inclusão socioeconômica dos trabalhadores terceirizados. Isso, inclusive, com a possibilidade de estipular salários e benefícios acima do piso legal da categoria desde que observados parâmetros institucionais de governança e mediante justificativa. A análise ocorreu no âmbito do Projeto Estratégico Corporativo – Diversidade e Inclusão, que reconheceu a importância de uma atuação institucional pautada pela responsabilidade social.
A jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU) tradicionalmente adotou um viés bastante restritivo em matéria de estipulação de salários e benefícios diferenciados para terceirizados. O entendimento que sempre predominou foi o de que a fixação de remuneração acima do piso da categoria somente se justificaria em hipóteses excepcionais, nas quais se demonstre a necessidade de profissionais com habilitação ou experiência superior à usualmente praticada em contratações similares no mercado.
O Acórdão 2.578/2018-Plenário, por exemplo, rejeitou justificativas apresentadas pelo Senado Federal para pagamento de salários acima do mínimo convencional em cargos como copeiro, contínuo, cozinheira e auxiliar de serviços gerais. A Corte de Contas ressaltou que não bastava a alegação de maior qualificação ou do ambiente em que os serviços seriam prestados. Era necessário comprovar, com pesquisa de mercado, que as funções demandavam maior complexidade durante a execução contratual.
Essa orientação foi incorporada pela Instrução Normativa 05/2017, do então Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), que vedou à Administração Direta, autárquica e fundacional a definição do valor da remuneração de terceirizados, salvo em hipóteses justificadas de maior complexidade.
Contudo, tais restrições não se aplicam de forma vinculante às empresas estatais, cujo regime jurídico é diverso e regido pela Constituição e pela Lei 13.303/2016.
O regime das estatais e a juridicidade ampliada
O artigo 173, § 1º da Constituição Federal, estabelece que empresas estatais se sujeitam ao regime jurídico das empresas privadas em matéria trabalhista, civil, comercial e tributária, mas impõe-lhes observância aos princípios constitucionais no campo das licitações. Nesse cenário, a Lei 13.303/2016 assume papel central.
Ao contrário da extinta Lei 8.666/1993, que foi a base de diversos entendimentos restritivos do TCU, a Lei das Estatais não contém vedação à estipulação de padrões remuneratórios diferenciados. Por sua vez, seu artigo 31 prevê que as licitações devem observar, entre outros objetivos, a promoção do desenvolvimento nacional sustentável.
O parecer argumenta que esse dispositivo deve ser lido em consonância com princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana e a igualdade material. Nessa interpretação, a juridicidade administrativa supera a legalidade estrita: não é necessário que exista lei ordinária específica para autorizar medidas afirmativas, bastando que estejam fundamentadas em princípios constitucionais.
Ações afirmativas como concretização da igualdade material
A Constituição de 1988 consagra o princípio da igualdade em duas dimensões: a negativa ou bloqueadora, que veda discriminações arbitrárias, e a positiva ou implementadora, que exige do Estado a adoção de medidas para reduzir desigualdades históricas.
As ações afirmativas se inserem nesse segundo aspecto. No campo das licitações, a evolução normativa evidencia a ampliação desse espaço. A Lei 8.666/1993, ainda em vigor até dezembro de 2023, já havia introduzido hipóteses de dispensa voltadas a minorias, como a contratação de associações de pessoas com deficiência (art. 24, XX). Posteriormente, a Lei 11.445/2007 incluiu a possibilidade de contratação direta de cooperativas de catadores de materiais recicláveis, medida que conjuga inclusão social e sustentabilidade ambiental.
A Lei Complementar 123/2006, por sua vez, assegurou tratamento diferenciado a micro e pequenas empresas, reconhecendo o papel estratégico dessas entidades na promoção do desenvolvimento econômico e social brasileiro. Posteriormente, a Lei 12.349/2010 introduziu de forma expressa o objetivo da promoção do desenvolvimento nacional sustentável no art. 3º da revogada Lei de Licitações.
A atual Lei de Licitações e Contratos (Lei 14.133/2021) reforçou esse movimento, prevendo mecanismos de equidade salarial, reserva de vagas e exigências de diversidade. Decretos federais recentes consolidam essa trajetória: o Decreto 11.430/2023 determinou a reserva de vagas a mulheres vítimas de violência doméstica em contratos de serviços contínuos, enquanto o Decreto 11.785/2023 instituiu o Programa Federal de Ações Afirmativas, voltado a populações historicamente discriminadas.
Experiências institucionais e comparadas
O parecer do BNDES destaca experiências relevantes que reforçam a juridicidade das ações afirmativas em contratações públicas. No Brasil, a Petrobras passou a exigir, em 2023, que todas as empresas terceirizadas ofereçam plano de saúde – inclusive odontológico – aos dependentes de seus trabalhadores. Trata-se de medida que, além de ampliar direitos sociais, sinaliza a força regulatória dos contratos públicos.
No plano internacional, bancos multilaterais de desenvolvimento como o BID e o Banco Mundial já incorporam critérios sociais em seus regulamentos de licitações. O PNUD, por exemplo, exige que fornecedores demonstrem compromisso com práticas sustentáveis, incluindo dimensões sociais, ambientais e econômicas.
Esses exemplos revelam uma tendência consolidada: o uso do poder de compra estatal como instrumento de transformação social e promoção de inclusão.
Experiência do BNDES
O parecer elaborado pelo BNDES conclui pela juridicidade da adoção de ações afirmativas em suas licitações e contratos, mesmo diante da jurisprudência restritiva aplicável à Administração Direta. O regime jurídico diferenciado das estatais, fundado na Constituição e na Lei 13.303/2016, autoriza a estipulação de salários e benefícios superiores ao piso legal para trabalhadores terceirizados, desde que prevista em política institucional e devidamente justificada em cada contratação.
A interpretação da licitação como mero procedimento de busca da proposta mais vantajosa economicamente deve ceder espaço a uma visão mais ampla, que reconheça sua função estratégica na promoção da igualdade material e do desenvolvimento sustentável. Ao incorporar medidas afirmativas, as estatais transformam seus contratos em instrumentos de cidadania, justiça social e efetivação dos direitos fundamentais previstos na Constituição de 1988.
Sob esse viés, o BNDES realizou, em 2024, a revisão de sua política institucional de equidade de gênero e valorização da diversidade. Com isso, implementou, pela primeira vez, ações afirmativas de inclusão socioeconômica de seus terceirizados no edital de licitação para contratação de locação de veículos com motoristas para a alta administração. Além disso, inseriu parâmetros mínimos de benefícios (vale-refeição, vale-transporte e assistência médica e hospitalar).
A partir de então, a experiência foi também estabelecida tanto em novas contratações de terceirização (licitações de TI, de serviços gerais de apoio administrativo como limpeza, recepção, garçonaria, dentre outros), como em contratos já vigentes à época, por meio de aditivos, de forma a abranger também terceirizados já alocados nos serviços.
Assim, a utilização das licitações e contratos, pelo BNDES, como ferramentas de implementação de ações afirmativas, mais do que um debate jurídico, revela-se na prática como um posicionamento institucional e político: utilizar o poder de compra estatal como meio de redução de desigualdades, fortalecimento da coesão social e de afirmação do compromisso da Administração Pública com um projeto de sociedade mais justa e inclusiva.