Os apagões que atingiram São Paulo após os vendavais de dezembro não podem ser tratados como episódios isolados nem como meras contingências climáticas. A interrupção prolongada do fornecimento de energia, que deixou centenas de milhares de consumidores sem luz por dias na semana passada, afetou mobilidade, abastecimento de água, serviços digitais, saúde e segurança urbana.
Quando eventos dessa magnitude se repetem, deixam de ser exceção e passam a integrar a normalidade social. É precisamente nesse ponto que o direito precisa abandonar a retórica do imprevisto e enfrentar o problema como questão estrutural de infraestrutura, regulação e escolha institucional.
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Sob a lente da sociologia jurídica de Émile Durkheim, o apagão deve ser compreendido como um fato social. Ele é exterior aos indivíduos, impõe-se coercitivamente à coletividade e produz efeitos generalizados sobre a vida social, independentemente da vontade de cada consumidor.
A ausência de energia elétrica não é um desconforto privado, mas um fenômeno coletivo que paralisa rotinas, interrompe serviços públicos essenciais e expõe fragilidades na organização social da cidade. Ignorar essa dimensão é reduzir o problema a um conjunto disperso de reclamações individuais, quando, na realidade, trata-se de um abalo direto à solidariedade social urbana.
Para fins deste artigo, entende-se por apagão a interrupção ampla e socialmente relevante do fornecimento de energia elétrica, atingindo grande número de unidades consumidoras e afetando, por período significativo, o funcionamento regular da cidade e de serviços essenciais.
Trata-se de um conceito descritivo do efeito coletivo da falta de energia — e não do mecanismo técnico que a desencadeia —, podendo decorrer de danos físicos na rede de distribuição, falhas operacionais, eventos climáticos extremos ou perturbações em outros níveis do sistema elétrico. Por isso, apagão não se confunde com o deslastre de carga, que é medida automática e deliberada de proteção sistêmica destinada a conter distúrbios e evitar colapso maior.
A eletricidade, no contexto contemporâneo, constitui a base material de praticamente todos os demais direitos sociais. Saúde, educação, trabalho, mobilidade, segurança e comunicação dependem de fornecimento contínuo e confiável de energia. Quando esse fornecimento falha de forma recorrente, o que se rompe não é apenas um contrato de concessão, mas um pacto social implícito entre Estado, concessionária e sociedade.
A normalização de apagões prolongados em grandes centros urbanos sinaliza um estado de anomia institucional, no qual as regras jurídicas deixam de produzir os efeitos esperados de estabilidade, previsibilidade e confiança.
É nesse cenário que a discussão sobre a subterraneização da rede elétrica ganha densidade jurídica incontornável. Não se trata de um debate estético ou de valorização imobiliária, mas de uma decisão regulatória com impacto direto na resiliência urbana frente a eventos climáticos extremos.
Redes aéreas, sobretudo em áreas altamente urbanizadas, revelam vulnerabilidade estrutural a ventos intensos, chuvas fortes e quedas de árvores. Quando o desastre se repete, essa vulnerabilidade deixa de ser hipótese técnica e passa a constituir dado empírico suficientemente robusto para exigir resposta normativa.
O direito ambiental fornece um eixo analítico decisivo para esse enfrentamento. A intensificação de eventos climáticos extremos já não é projeção científica abstrata, mas realidade estatística reiterada. O princípio da prevenção e, sobretudo, o princípio da precaução impõem ao poder público e aos reguladores o dever de agir diante de riscos conhecidos e recorrentes. Manter uma infraestrutura elétrica comprovadamente frágil frente a eventos previsíveis contraria a lógica elementar da tutela ambiental e da adaptação climática, especialmente em ambientes urbanos complexos.
Nesse ponto, o direito dos desastres climáticos oferece chave interpretativa adicional. Desastres não são apenas fenômenos naturais, mas o resultado da interação entre eventos físicos e decisões humanas, institucionais e regulatórias. Quando uma metrópole sofre apagões reiterados após tempestades, o componente normativo torna-se tão relevante quanto o meteorológico. A pergunta jurídica central deixa de ser “qual foi a intensidade do vento” e passa a ser “por que a infraestrutura permaneceu vulnerável apesar da previsibilidade do risco”.
A insistência em classificar vendavais como força maior absoluta esvazia a própria noção de responsabilidade regulatória. A recorrência elimina o caráter de imprevisibilidade e desloca o debate para a gestão do risco sistêmico. O direito administrativo contemporâneo, especialmente no regime das concessões de serviços públicos, já não admite a neutralização automática do dever de continuidade com base em eventos que passaram a integrar o horizonte normal de riscos da atividade.
Essa inflexão encontra respaldo normativo explícito no Decreto 12.068/2024, que regulamenta a licitação e a prorrogação das concessões de distribuição de energia elétrica no Brasil. O decreto redefine os critérios de renovação dos contratos que vencem entre 2025 e 2031, incluindo o da Enel em São Paulo, ao introduzir exigências claras relacionadas à recomposição do serviço após eventos climáticos extremos, à satisfação dos consumidores, à saúde financeira da concessionária e ao reforço do poder sancionatório da Aneel, inclusive com mecanismos facilitados de caducidade.
O novo regime jurídico sinaliza mudança estrutural: a resiliência frente a eventos extremos deixa de ser expectativa genérica e passa a integrar o núcleo da avaliação regulatória. Metas rigorosas de recomposição do serviço, limites à distribuição de dividendos em caso de descumprimento de indicadores de qualidade e a possibilidade real de caducidade por reincidência transformam a adaptação climática em variável jurídica concreta. Nesse contexto, insistir em um modelo de rede aérea estruturalmente vulnerável torna-se não apenas tecnicamente questionável, mas juridicamente arriscado.
Há ainda um dado econômico incontornável que torna a situação paulista particularmente paradoxal. A área de concessão da Enel em São Paulo concentra alguns dos maiores PIBs municipais e o mais elevado PIB per capita do país. Trata-se de uma das regiões economicamente mais produtivas da América Latina, com elevada densidade de serviços avançados, economia digital, finanças, logística e indústria de alto valor agregado. Sob qualquer lógica econométrica básica, regiões com maior produto e maior custo marginal de interrupção deveriam apresentar infraestruturas mais robustas, e não mais frágeis.
Do ponto de vista da análise econômica do direito, o custo social do apagão em uma metrópole de alto PIB é exponencialmente superior ao custo em áreas de menor densidade econômica. Cada hora sem energia em São Paulo gera perdas agregadas que superam, com larga margem, o custo médio incremental de investimentos estruturais em resiliência. A persistência de redes aéreas em um território com tamanha concentração de capital humano, financeiro e produtivo revela uma alocação ineficiente de risco, na qual os prejuízos difusos são sistematicamente externalizados à sociedade.
Há também uma dimensão de justiça ambiental e territorial que não pode ser ignorada. Os impactos dos apagões não se distribuem de forma homogênea: atingem com maior intensidade populações mais vulneráveis, pequenos comércios, trabalhadores informais e serviços públicos locais. A infraestrutura elétrica, longe de ser neutra, organiza espacialmente riscos e desigualdades. Tornar a rede mais resiliente, inclusive por meio da subterraneização em áreas críticas, é também uma forma de reduzir assimetrias sociais produzidas por falhas estruturais persistentes.
Insistir na manutenção de um modelo de rede reiteradamente inadequado equivale, em última instância, a naturalizar o desastre como parte da vida urbana. Essa naturalização é incompatível tanto com a sociologia jurídica de Durkheim, que vê o direito como expressão da solidariedade social, quanto com o direito ambiental contemporâneo, orientado à prevenção, à precaução e à adaptação climática. O apagão, enquanto fato social, exige resposta normativa proporcional à extensão de seus efeitos coletivos.
Falar em subterraneização da rede da Enel, portanto, não é falar de um futuro distante ou de uma agenda idealizada, mas de um presente jurídico concreto. A janela regulatória que se abre até 2028, reforçada pelo Decreto 12.068/2024, coloca o poder concedente, o regulador e a concessionária diante de uma escolha inequívoca: tratar os apagões como acidentes inevitáveis ou reconhecê-los como sintomas de um modelo que já não se sustenta técnica, econômica e juridicamente. O direito, se quiser permanecer funcional à sociedade que regula, não pode se esquivar dessa decisão.