Getulino foi um dos pseudônimos utilizados pelo célebre advogado abolicionista Luís Gama, para denunciar exageros provincianos contra os pretos, nos idos de 1860, alertando agressões a diversos limites de humanismo.
Sem medo de verdades, Gama transpunha a liturgia da diferença e, altivo, expunha o grito engasgado de quem era esmagado por atos inconcebíveis de autoridades da época.
A pena de Luís era forte e apresentou críticas sinceras a um país que já se desenhava sob antinomias e desigualdades. A lhaneza do causídico pedia licença para revelar dores reais e verdadeiras.
A Corte imperial foi cegamente reverenciada até se deparar com as trovas burlescas[1]e, a partir daí, teve oportunidades de se atentar para reflexos óbvios e lastimáveis de ações ou omissões aviltantes à negritude.
Quem abria o jornal da época não repreendia advertências a um Governo do Império descrito como artífice de coisas de espantar o mundo inteiro, restando, por outro lado, ao matuto se mexer para não se deixar transformado (apesar de sapiens) em um animal qualquer[2]. Era esse peso de suas palavras
Era a trincheira cavada contra a escravidão, cavada onde o Poder Público se calava ou fingia normalidade. O trovador Gama ainda influenciou alguns inquietos pensadores, como Raymundo Faoro e Vitor Nunes Leal, que muito contribuíra à evolução do Estado brasileiro.
Agora, em pleno ano de 2025, porque relembrar Luís Gama, seu legado e o conhecido vaticínio de que não te espantes, ó Leitor, da novidade, Pois que tudo no Brasil é raridade?
A nova escravidão brasileira são as dívidas bancárias de um sistema financeiro aparelhado e desenfreado, que não enxerga mais limites decentes para a sobrevivência de famílias atoladas em operações facilitadas, mas, impagáveis.
As Nações Unidas e o Banco Mundial acabaram de revisar a definição de extrema pobreza, situação de quem vive com o equivalente a US$ 3 por dia[3].
Sem usar a calculadora, com o dólar a R$ 5,40, são cerca de R$ 16 ao dia, chegando-se aproximadamente a R$ 500 por mês. Esta é a linha sob a qual se coloca alguém “abaixo da pobreza”.
Acima da pobreza extrema estão, também por levantamento técnico de 2025, quem consegue ter US$ 6,85 de sol a sol. Na mesma tabuada, oficialmente, o pobre vive com cerca de R$ 37 diários ou algo perto de R$ 1.110 mensais.
Endividado ou não, doente ou não, empregado ou não, alojado ou não, é a conta mundial definida para o que os estrangeiros chamam de sobrevivência digna.
Mas, desde 2022, um Decreto brasileiro (11.567/2023) definiu que o mínimo existencial a ser preservado em renegociações de pessoas superendividadas só respeita ao teto de R$ 600 reajustáveis.
Em termos práticos, embora o Brasil tenha normas para o tratamento do superendividamento – uma catástrofe social –, a parcela mínima que os credores (bancos, em sua maioria) podem abocanhar para recuperar empréstimos não pagos, impõem às famílias em tais situações que vivam com US$ 3,70 diários.
Desumano? Vamos perguntar ao Banco Central e ao Serasa, pois eles respondem com razão e justiça.
O primeiro é a autoridade monetária superior nacional, reguladora de um mercado de crédito onde há uma indiscutível divisão do mercado operado significativamente por apenas cinco instituições financeiras, além do silêncio regulatório que permite a prática dos juros mais altos do planeta.
O segundo é um conglomerado privado que orienta os bancos acima a fazerem avaliação de crédito, vende soluções contra fraudes bancárias (algo banalizado ao cotidiano brasileiro) e de como avançar indefinidamente sobre a renda dos devedores. O Serasa, atualmente, que dívidas prescritas sejam cobradas de brasileiros em caso a ser julgado perante o Superior Tribunal de Justiça.
Do outro lado do balcão, para quem atende pessoas afligidas por dívidas impagáveis, a lei brasileira até chegou a dar uma alforria parecida com a recuperação judicial das empresas, onde os credores se reúnem e amealham os ganhos do devedor proporcionalmente.
Aí entra o tal mínimo existencial, critério de até onde podem avançar as financeiras para se reembolsarem, deixando algo para o quase-falido arcar com alimentação, moradia, vestuário e alguma outra necessidade básica.
Contra o Decreto acima, representação de promotores de justiça e defensores públicos ingressaram, no Supremo Tribunal Federal, com medidas visando elevar o patamar de R$ 600, ao menos para que ficasse próximo do salário-mínimo atual (que é de pouco mais de R$ 1.500)
Os processos (APDFs 1.005, 1.006 e 1.097) tiveram início de julgamento agora, no apagar de 2025, em plenário virtual, sem apreciação presencial e tolhendo o direito à fala dos representantes de quem se submeterá, diariamente, aos ônus dessa definição.
O primeiro voto já está no ar e, apoiado exclusivamente nos números do Serasa e do Banco Central, afirma que os seiscentos atualizados bastam. Mantém íntegro o Decreto e dispensa outras perspectivas sobre tais números, pois, o assunto seria por demais complexo.
Onde estão as legiões de Faoro ou Nunes Leal? Onde está a Procuradoria-Geral da República e sua Câmara especializada em proteção a vulneráveis? A nova escravidão bate à porta do brasileiro e, mercê de admoestações sobre o peso de palavras dirigidas ao Supremo, há quem não fique calado.
Sem economês e firme no leito de Luís Gama, é inusitado ver um parâmetro de pobreza extrema sustentado no mais Alto Judiciário que, ao que consta, é regido por uma Constituição Federal proclamada Cidadã, texto recheado de guias concretas que primam por dignidade, sociedade justa e solidária, além de programação para a proteção do consumidor.
Por seiscentos reais ao mês, Getulino bradaria aos quatro cantos que matuto não se cala ne, pode ser desmerecido como um estúpido[4]!
Julgar uma questão desse jaez sem abrir fala, sem debates e lastreado unicamente em uma deferência à mesma tecnocracia que franqueou recordes anuais de lucros bilionários (aos bancos, em contrapartida à escalada do aniquilamento famélico de orçamentos familiares) é apagar a densidade do que é humano; de um olhar também para o sofrimento e para combater a miséria.
Ah! O título deste manuscrito, quase que passa por esquecido. Longe de aceitar qualquer defesa econômica de números unilaterais da inteligência bancária ou de uma agência até pouco orientada pela atual direção da maior federação de bancos, debruça-se no cotidiano de quem está à frente do Poder.
A conclusão deste manuscrito lhe convida, ó Leitor, a conferir a conta do próximo almoço ou jantar de fim de semana. Para quem se responsabiliza pelas definições do mínimo existencial brasileiro, especialmente, reflita: dobrar o piso atual do mínimo existencial equivale apenas a pedir mais uma garrafa ao garçom. Em boa matemática financeira, é só mais uma garrafa, Excelência.
[1] GAMA, Luís. Primeiras trovas burlescas. Principis, pp. 11-12, 2021.
[2] GAMA, Luís. Op. Cit., p. 12.
[3] WB Report on Poverty. 2025. Disponível em: <<https://unstats.un.org/sdgs/report/2025/goal-01/
[4] GAMA, Luís. Op. Cit., p. 12.