Conviver com uma doença rara é, antes de tudo, aprender a navegar em terras desconhecidas – uma travessia que, no Brasil, começa antes mesmo da confirmação do diagnóstico, que leva em média de 5 a 7 anos. Na minha família não foi diferente. Desde 2009, quando meu marido recebeu o diagnóstico de distrofia muscular de Becker, passamos a lidar não apenas com as limitações físicas da doença, mas também com a falta de informação e de cuidado adequado.
Com o tempo, entendi que nossa história se assemelha à de milhares de famílias brasileiras que convivem com a distrofia muscular de Duchenne (DMD). A mais comum e grave das distrofias, a DMD afeta cerca de 1 em cada 3.500 a 5.000 meninos nascidos vivos, manifestando-se logo na infância com uma degeneração muscular progressiva que pode levar à necessidade de cadeira de rodas, e até mesmo a complicações cardíacas e pulmonares. A causa é uma mutação no gene responsável pela produção da distrofina, proteína essencial para a integridade dos músculos.
No caso da DMD, graças aos avanços científicos e ao acompanhamento multiprofissional, a expectativa e qualidade de vida das pessoas com a doença têm aumentado. Pacientes que antes não chegavam à vida adulta hoje alcançam a terceira década de vida. Esse progresso mostra como a combinação entre ciência, cuidado especializado e acesso pode modificar o curso da doença
Nos últimos anos, a ciência tem aberto caminhos promissores para além dos cuidados já consolidados. Entre essas novas fronteiras está a terapia gênica, que desponta como um grande marco científico. De acordo com mapeamento feito este ano pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o Brasil é o 12º país com mais estudos clínicos sobre terapia gênica no mundo e o primeiro entre países latino-americanos. Todavia, a abordagem é uma promessa que precisa ser analisada com cautela e que também possui limitações.
Embora seja um avanço científico, a terapia gênica não se aplica a todos os casos e não deve ser vista como solução única. O gene DMD, que produz a distrofina, é o segundo maior do genoma humano e não cabe inteiro nos vetores usados hoje em terapia gênica. Por isso, foram criadas versões menores, como a microdistrofina, capazes de gerar apenas parte da proteína. A técnica ainda é recente e seus efeitos de longo prazo ainda estão sendo estudados, além de apresentar limitações importantes, como a questão dos anticorpos contra o vetor viral. Ou seja, ainda que os resultados sejam animadores, é preciso reconhecer que há desafios significativos a superar antes de falarmos em uma solução definitiva.
É justamente por isso que precisamos falar sobre a criação de um protocolo clínico para DMD e sobre seu arsenal terapêutico. Não existe um único caminho para tratar Duchenne, mas sim a combinação de diferentes abordagens. Medicamentos já disponíveis – sejam os silenciadores genéticos, terapia de precisão, as terapias gênicas ou corticoides-, fisioterapia, suporte respiratório e cardíaco quando necessário, acompanhamento psicológico e social, por exemplo, fazem parte do cuidado que realmente transforma a vida dos pacientes e de suas famílias.
Para que esse arsenal seja uma realidade acessível, é urgente investir em políticas públicas que incentivem novas pesquisas no país, bem como acelerem aprovações regulatórias e a incorporação de novas tecnologias no Sistema Único de Saúde, sempre com equidade.
Tempo é músculo e o Brasil precisa estar preparado para oferecer não apenas inovação, mas também continuidade de cuidado, acolhimento e dignidade a quem convive com a doença. A esperança da comunidade Duchenne está na soma de todas as inovações e no olhar individualizado para cada paciente. Como presidente da Aliança Distrofia Brasil e, acima de tudo, como alguém que vive diariamente os impactos de uma distrofia, acredito que o futuro das famílias passa por um compromisso.