Regulando a IA e regulando com IA

Qual é o papel da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) no ecossistema digital brasileiro? Como a Anatel tem enfrentado os desafios e se adaptado às oportunidades relacionadas à difusão da inteligência artificial[1] no setor?

Esses questionamentos vêm pautando a “nova identidade institucional” da agência, cujo objetivo consiste em se (re)posicionar como “instituição ativa na transformação digital do País”. Portanto, nos termos do seu próprio Plano Estratégico 2023-2027, a Anatel pretende se reestruturar como órgão regulador atento à (i) promoção da “conectividade universal e significativa” para a população brasileira e ao (ii) estímulo de “mercados dinâmicos e sustentáveis de serviços digitais de comunicação”.[2]

Não por acaso, em agosto/setembro de 2023, a agência remodelou a estrutura de seu Centro de Altos Estudos em Telecomunicações (Ceatel) – pioneiramente gestado pelo conselheiro Otávio Luiz Rodrigues Jr. Assim, estabeleceu o atual Centro de Altos Estudos em Comunicações Digitais e Inovações Tecnológicas (Ceadi) – hoje, presidido pelo conselheiro Alexandre Freire.[3]

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O Ceadi é responsável pelo fomento a pesquisas científicas voltadas à inovação tecnológica, à segurança cibernética e às transformações digitais do setor de telecomunicações.[4] Seguindo tal objetivo, a instituição firmou relevante parceria com o Centro de Políticas, Direito, Economia e Tecnologias das Comunicações da Universidade de Brasília (CCOM/UnB) a fim de elaborar estudos e propostas acerca dos “Novos Desafios Regulatórios do Ecossistema Digital”, sob supervisão de Marcio Iorio Aranha.[5]

A partir dessa pesquisa e de novas iniciativas da agência, é possível afirmar que a Anatel está explorando a inteligência artificial sob duas perspectivas. Por um lado, (a) como objeto da regulação do setor de telecomunicações. Por outro, (b) como ferramenta de trabalho utilizada em ações regulatórias e na gestão da Anatel.

A Anatel e a regulação setorial da IA

Sob a perspectiva da regulação setorial, primeiramente, vale mencionar a Agenda Regulatória 2025-2026[6]. Por meio dela, a Anatel incorporou expressamente os impactos substanciais da IA no setor de telecomunicações e nas diretrizes para regulá-lo.

Nessa linha, o item nº 3 da Agenda menciona a necessidade de revisitar protocolos de segurança cibernética e pressupostos de resiliência das infraestruturas de telecomunicações justamente em face de riscos e vulnerabilidades ligados às soluções de IA, aos serviços de cloud computing e à expansão de data centers no Brasil.

Já o item nº 10 prevê a reavaliação das diretrizes regulatórias da Anatel diante de “aplicações baseadas em Inteligência Artificial, ao longo de toda a cadeia de valor de prestação de serviços”. Por exemplo, por meio de experimentalismo regulatório[7] e de reavaliações acerca do estado d’arte da regulação setorial. Tudo isso a fim de verificar: (a) se há “barreiras desnecessárias ao uso” de IA no setor ou, de outro modo, (b) se há pontos que demandam maior fiscalização e acompanhamento do órgão regulador.

A segunda iniciativa a ser citada decorre do acordo de cooperação técnica firmado entre Anatel, Ministério das Relações Exteriores e Unesco. O pacto almeja a capacitação da agência para “o cenário de interrelação entre IA e telecomunicações”, com ênfase na difusão de habilidades digitais para que a população possa usufruir de tais tecnologias. Ou seja, explora a relação entre conectividade significativa e IA.[8]

Nesse âmbito, além de publicizar sua “visão institucional de futuro” sobre os efeitos da IA no setor e na regulação setorial, a Anatel corretamente abriu Tomada de Subsídios “para coletar insumos e percepções acerca do papel da conectividade enquanto plataforma habilitadora” do desenvolvimento de IA.[9]

Desse modo, acertadamente, a agência compreende o uso ético da IA no setor como vetor para alcançar objetivos normativos vigentes em políticas públicas setoriais. Contudo, a seguinte ressalva é necessária. Se a Anatel pretende incentivar o uso responsável da IA pelos agentes regulados, é preciso o seu persistente acompanhamento dos riscos em torno das soluções desenvolvidas por esses atores. Afinal, boas práticas de transparência não podem constar apenas no papel.

IA como ferramenta regulatória à disposição da Anatel?

Sob a perspectiva do uso de soluções de IA para consecução da regulação setorial, a primeira iniciativa a ser mencionada advém do Laboratório de Inovação da Superintendência de Fiscalização da Anatel, no âmbito do Plano de Ação de Combate à Pirataria (PACP): o Regulatron[10]. Trata-se de solução institucional de IA voltada à fiscalização de milhares de anúncios publicitários on-line e identificação de produtos irregulares ou não homologados à luz do banco de dados interno da Anatel.

Entretanto, ainda é importante avançar na interação com as soluções autorregulatórias de IA gestadas pelos agentes regulados, prestigiando uma atuação responsiva. É dizer: sem abrir mão de sanções quando necessárias, a Anatel pode valorizar iniciativas de conformidade regulatória com caráter inovador. E, assim, diferenciar comportamentos dos agentes, além de determinar aperfeiçoamentos necessários.[11]

Em segundo lugar, vale mencionar a parceria firmada entre o Ceadi/Anatel e a Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).[12] A iniciativa se volta ao estudo dos riscos e a formulação de propostas em torno das potencialidades no uso de aplicações de IA em processos administrativos sancionatórios da agência.

Todavia, eventuais propostas não podem esquecer de iniciativas já existentes, tais como: (i) o Assistente SEI IA, desenvolvido pela Secretaria de Gestão da Informação; (ii) o AvalIA – ferramenta que diagnostica o desempenho das empresas prestadoras no atendimento às reclamações recebidas no portal Anatel Consumidor.

E mais: permitindo participação social e auditabilidade das medidas, essas propostas devem seguir fielmente o intuito da Anatel de alinhar sua atuação e seus procedimentos com as “recomendações internacionais atinentes à adoção responsável da IA”, nos termos do item nº 10 da Agenda Regulatória.

Nesse sentido, Em terceiro lugar, é bem-vinda a abertura de Tomada de Subsídios – promovida pelo IA.LAB do Ceadi/Anatel – para fins de elaboração da Política de Governança de Inteligência Artificial (PGIA) da agência.[13]

Inspirada no Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA)[14], essa proposta normativa traça balizas gerais para “assegurar que as soluções de IA adotadas pela agência sejam éticas, robustas e compatíveis com interesse público” acompanhadas de diretrizes mais concretas.

No entanto, por mais louvável que sejam os objetivos almejados, somente o tempo dirá sobre a efetividade das medidas. Por essa razão, a sociedade civil e a academia devem exercer papel ativo de supervisão para que a agência não caminhe pelo solucionismo tecnológico ou o uso acrítico de IA. É preciso identificar riscos, desenvolver protocolos de mitigação e estabelecer salvaguardas que permitam o uso ético da IA internamente.[15]

O setor de telecomunicações e a transformação digital

Ao apreciar a ADI 6482, o então presidente ministro Luiz Fux destacou que o setor de telecomunicações exerce uma “posição estratégica” em prol dos objetivos constitucionais de desenvolvimento sócio-econômico nacional e de fortalecimento do mercado interno em prol da autonomia tecnológica (arts. 3º, II, c/c 219, da CRFB/88).[16]

Isso porque, na sua visão, o setor se consagrou como altamente relevante tanto “para a geopolítica e para economia”, quanto para possui “o auxílio à produtividade de outros setores” estratégicos – a exemplo do agronegócio. Consequentemente, remodelar arcabouços jurídico-institucionais e políticas econômicas do setor passou a ser “tarefa central do Estado brasileiro” em prol da inovação tecnológica e da inclusão digital.[17]

Nas palavras do Conselheiro Edson Holanda, a infraestrutura crítica de telecomunicações é, hoje, o alicerce físico da transformação digital. Apesar de invisível para boa parte da população, a qualidade técnica dessa rede é essencial para a velocidade, estabilidade e segurança das aplicações digitais utilizadas no dia a dia.[18]

Em síntese, o exemplo setorial da Anatel ilustra um fenômeno mais estrutural: a necessidade de se repensar o papel constitucional do Estado brasileiro como agente normativo e regulador da atividade econômica (art. 174, caput, CRFB/88) em prol de maior autonomia tecnológica nacional e soberania em IA[19]. Objetivos esses que só podem ser pensados em conjunto com a busca pela redução de desigualdades (regionais e sociais) por meio da inclusão digital e da conectividade significativa.

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Conclusão e desafios futuros

Portanto, entre tantos pontos debatidos nesta coluna, dois eixos podem ser apontados como comuns para a concretização dos objetivos mencionados.

O primeiro eixo é o da coordenação regulatória e da cooperação[20] interistitucional entre os diferentes agentes (públicos e privados) envolvidos.[21]

Esse aspecto foi bem percebido pelo PL 2338/2023 ao estipular o Sistema Nacional de Regulação e Governança (SIA). Endossado ontem pelo Governo Federal, o SIA estabelece a Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD) como autoridade central. Porém, prevê sua atuação residual nos espaços de competência das autoridades setoriais. Afinal, para efetividade do SIA, os órgãos diretamente relacionados ao ecossistema digital terão de manter diálogo constante: ANPD, Anatel, Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), entre outros.[22]

O segundo eixo é complementar. Cuida-se da articulação das funções constitucionais do Estado brasileiro (v.g. fiscalização, incentivo, planejamento e repressão do abuso de poder econômico) em prol de um marco regulatório equilibrado. É preciso construir um arcabouço normativo-institucional capaz de conjugar desenvolvimento sustentável, inovação tecnológica e proteção de direitos fundamentais.

[1] Para uma abordagem crítica do conceito de IA nesta coluna, Cf.: KELLER, Clara Iglesias. O que regulamos quando regulamos IA? Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/ia-regulacao-democracia/o-que-regulamos-quando-regulamos-a-ia Acesso em: 09 dez. 2025.

[2] BRASIL, Agência Nacional de Telecomunicações. Conselho Diretor aprova remodelação do Ceatel. Disponível em: https://www.gov.br/anatel/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/planejamento-estrategico Acesso em: 08 dez. 2025.

[3] BRASIL, Agência Nacional de Telecomunicações. Conselho Diretor aprova remodelação do Ceatel. Disponível em: https://www.gov.br/anatel/pt-br/assuntos/noticias/conselho-diretor-aprova-remodelacao-do-ceatel Acesso em: 07 dez. 2025; BRASIL, Agência Nacional de Telecomunicações. Ceadi inaugura galeria em homenagem aos ex-presidentes do think tank da Anatel. Disponível em: https://www.gov.br/anatel/pt-br/assuntos/noticias/ceadi-inaugura-galeria-em-homenagem-aos-ex-presidentes-do-think-tank-da-anatel Acesso em: 07 dez. 2025.

[4] BRASIL, Agência Nacional de Telecomunicações. Ceadi. Disponível em: https://www.gov.br/anatel/pt-br/composicao/ceadi Acesso em: 07 dez. 2025.

[5] Cf.: BRASIL, Agência Nacional de Telecomunicações. Ecossistema Digital. Disponível em: https://www.gov.br/anatel/pt-br/composicao/ceadi/estudos-e-parcerias/ecossistema-digital Acesso em: 07 dez. 2025.

[6] BRASIL, Agência Nacional de Telecomunicações. https://www.gov.br/anatel/pt-br/regulado/agenda-regulatoria/2025-2026 Acesso 20 nov. 2025.

[7] BRASIL, Agência Nacional de Telecomunicações Experimentalismo regulatório: como a Anatel abre caminho para o futuro do ambiente digital. Brasília, 24 nov. 2025. Disponível em: https://www.gov.br/anatel/pt-br/assuntos/noticias/experimentalismo-regulatorio-como-a-anatel-abre-caminho-para-o-futuro-do-ambiente-digital. Acesso em: 10 dez. 2025.

[8] BRASIL, Agência Nacional de Telecomunicações. Anatel, Unesco e MRE assinam cooperação técnica sobre conectividade significativa e inteligência artificial. Brasília, 2025. Disponível em: https://www.gov.br/anatel/pt-br/assuntos/noticias/anatel-unesco-e-mre-assinam-cooperacao-tecnica-sobre-conectividade-significativa-e-inteligencia-artificial. Acesso em: 9 dez. 2025;Brasil, Agência Nacional de Telecomunicações. Anatel abre tomada de subsídios sobre relacionamento entre inteligência artificial e conectividade. Brasília, 09 abr. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/anatel/pt-br/assuntos/noticias/anatel-abre-tomada-de-subsidios-sobre-relacionamento-entre-inteligencia-artificial-e-conectividade. Acesso em: 9 dez. 2025.

[9] Anatel abre tomada de subsídios sobre relacionamento entre inteligência artificial e conectividade. Brasília, 09 abr. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/anatel/pt-br/assuntos/noticias/anatel-abre-tomada-de-subsidios-sobre-relacionamento-entre-inteligencia-artificial-e-conectividade. Acesso em: 10 dez. 2025.

[10] BRASIL, Agência Nacional de Telecomunicações. White paper combate à pirataria: histórico, benchmark internacional, resultados obtidos e desafios enfrentados. Brasília: Anatel, 2025, p. 43. Disponível em: https://www.gov.br/anatel/pt-br/assuntos/noticias/anatel-lanca-white-paper-e-reforca-compromisso-com-a-seguranca-dos-usuarios Acesso em: 07 dez. 2025.

[11] BRASIL, Agência Nacional de Telecomunicações. Marketplaces adotam medidas para coibir venda de produtos não homologados. Brasília, 24 nov. 2021. Disponível em: https://www.gov.br/anatel/pt-br/assuntos/noticias/marketplaces-adotam-medidas-para-coibir-venda-de-produtos-nao-homologados. Acesso em: 10 dez. 2025.

[12] BRASIL, Agência Nacional de Telecomunicações. Anatel celebra parceria com Universidade Federal de Campina Grande. Brasília, 24 dez. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/anatel/pt-br/assuntos/noticias/anatel-celebra-parceria-com-universidade-federal-de-campina-grande. Acesso em: 9 dez. 2025.

[13] BRASIL, Agência Nacional de Telecomunicações. IA.lab publica consulta interna sobre governança de Inteligência Artificial. Brasília, 25 set. 2025. Disponível em: https://www.gov.br/anatel/pt-br/assuntos/noticias/ia-lab-publica-consulta-interna-sobre-governanca-de-inteligencia-artificial. Acesso em: 9 dez. 2025.

[14] SARLET, Gabrielle B.S.; SARLET, Ingo. Sinergia para o futuro: PBIA, PL 2338 e a regulação da IA no Brasil. JOTA. 07 ago. 2024. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/ia-regulacao-democracia/sinergia-para-o-futuro-pbia-pl-2338-e-a-regulacao-da-ia-no-brasil. Acesso em: 10 dez. 2025.

[15] BINENBOJM, Gustavo. Inteligência Artificial e as decisões administrativas. Revista Eletrônica da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro -PGE-RJ, Rio de Janeiro, v. 5 n. 3, set. /dez. 2022.

[16] Cf.: FONSECA, Gabriel Campos Soares da; SIGNORELLI, Ana Sofia M. Desigualdades Regionais e Conectividade Significativa: A ADI 6482 à luz do Direito Econômico do Eixo Norte-Nordeste. In: SIGNORELLI, Ana. (et. al). Direito Econômico no Eixo Norte-Nordeste. Campinas: Lacier, 2025.

[17] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADI 6482. Rel. Min. Gilmar Mendes, PLENÁRIO, DJe 221/05/021.

[18] HOLANDA, Edson. A base invisível da transformação digital. Correio Braziliense, 29/09/2025. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2025/09/7258245-a-base-invisivel-da-transformacao-digital.html#google_vignette Acesso em: 09 dez. 2025.

[19] BELLI, Luca. Da soberania digital à soberania em IA. JOTA, 26/02/2025. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/ia-regulacao-democracia/da-soberania-digital-a-soberania-em-ia Acesso em: 08 dez. 2025.

[20] SEIXAS, Luiz Felipe Monteiro; SAAB, Flávio. Cade e agências reguladoras: avanços e desafios da cooperação institucional. JOTA, 23/10/2025. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/cade-e-agencias-reguladoras-avancos-e-desafios-da-cooperacao-institucional Acesso em: 08 dez. 2025.

[21] FREIRE, Alexandre. IA sem diálogo institucional? JOTA. 08/10/2025. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/ia-sem-dialogo-institucional Acesso em: 08 dez. 2025.

[22] VERONESE, Alexandre; FONSECA, Mariana Moutinho. Como regular as questões relacionadas ao digital? JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/judiciario-e-sociedade/como-regular-as-questoes-relacionadas-ao-digital Acesso em: 08 dez. 2025.

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