O dia 10 de dezembro marca o Dia Internacional dos Direitos Humanos, ocasião para revisitar o percurso desses direitos na agenda nacional e internacional e refletir sobre os desafios à sua consolidação, bem como sobre as ferramentas jurídicas disponíveis.
Este artigo dialoga com um dos desafios: o tráfico de pessoas para fins de trabalho análogo à escravidão e sua relação com migração e práticas empresariais – tema particularmente relevante, já que a data também relembra a responsabilidade compartilhada necessária para dar sentido concreto aos direitos humanos.
Para compreender o fenômeno, é essencial retomar seu enquadramento jurídico internacional. Atualmente, a principal referência é o Protocolo para Prevenir, Suprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, especialmente Mulheres e Crianças (Protocolo de Palermo), complementar à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, adotado em Nova York em 15 de novembro de 2000.
Seu artigo 3º define o tráfico a partir de três elementos centrais: uma ação – captação, transporte ou alojamento; um meio – como ameaça, força, coação, fraude, abuso de autoridade, situação de vulnerabilidade ou benefícios para obtenção de consentimento; e um fim – a exploração, que engloba trabalho forçado, prostituição, escravatura e remoção de órgãos.
No plano regional, há uma assimetria evidente: a Europa conta com instrumento robusto, o Convênio do Conselho da Europa sobre a Luta contra a Trata de Seres Humanos (2005), que aprofunda as obrigações do Protocolo de Palermo e estabelece padrões de prevenção, proteção e cooperação judicial[1]. No sistema interamericano, porém, não há um tratado regional equivalente; a OEA limita-se a instrumentos não vinculantes, recomendações e iniciativas de cooperação[2], revelando lacunas normativas importantes[3].
Recentes tendências no tráfico humano global e na América Latina
Desde 2022, o tráfico humano para fins de trabalho escravo tornou-se a forma mais comum de tráfico no mundo superando a exploração sexual (36%) e, de acordo com a UNODC, abarcando 42% das vítimas globais[4]. Na América do Sul, essa tendência é ainda mais acentuada: 55% das vítimas identificadas foram submetidas a trabalho escravo, consolidando a exploração laboral como o principal vetor do tráfico na região[5]. Apesar disso, apenas 17% das prisões por tráfico humano referem-se ao trabalho escravo, enquanto o tráfico sexual, embora menos prevalente, represente 72%[6].
Esse descompasso decorre, em parte, de definições legais restritas ou imprecisas nos países latino-americanos, além da baixa capacidade estatal de fiscalizar setores informais e rurais, onde a exploração é mais frequente[7]. O problema, contudo, é estrutural: a maior parte das vítimas de tráfico laboral na região são migrantes econômicos expostos à discriminação, ausência de políticas de acolhimento e vulnerabilidade socioeconômica, o que facilita a atuação de aliciadores[8].
O caráter regional dos fluxos reitera essa fragilidade institucional e social na medida que 74% das vítimas latino-americanas são traficadas dentro do próprio país, e outros 14% circulam entre países da região ou do Caribe[9]. Isso significa que o fenômeno não é predominantemente transnacional, mas doméstico e, consequentemente, a resposta não deve ser apenas internacional, mas sim local, trabalhista e pró-migrante, integrando políticas de fiscalização, regularização migratória e inserção socioeconômica.
Esse quadro evidencia que o tráfico para trabalho escravo continua decorre da falta de políticas robustas de integração, que deixem o migrante sem documentação, sem domínio do idioma e sem acesso ao mercado formal, impulsionando-o a aceitar ofertas em setores altamente vulneráveis[10]. Não por acaso, construção civil, agricultura, pesca e trabalho doméstico concentram a maior parte dos casos, por exigirem baixa qualificação e pouca proficiência linguística – características que favorecem tanto a contratação segura quanto a exploração criminosa[11].
Assim, o combate ao tráfico laboral demanda mais do que repressão penal: requer prevenção estrutural envolvendo governos, empresas e sociedade civil. Programas corporativos de acolhimento e contratação segura de imigrantes – ainda raros e geralmente restritos a refugiados – poderiam reduzir significativamente essa vulnerabilidade. Sua ausência cria um vácuo hoje preenchido por redes criminosas que oferecem “emprego imediato”, mas operam regimes de servidão.
O papel das práticas empresariais de inclusão de migrantes
A prevenção ao tráfico humano para fins de trabalho escravo exige uma mudança estrutural na forma como o setor privado compreende e acolhe migrantes. É necessário reconhecê-los não apenas como força de trabalho, mas como sujeitos em vulnerabilidade agravada por fatores jurídicos, econômicos, sociais e ambientais.
Tanto o Global Compact quanto os United Nations Guiding Principles on Business and Human Rights (UNGPs) estabelecem que empresas devem prevenir violações de direitos humanos em suas cadeias produtivas, mitigando riscos de trabalho forçado e tráfico. Contudo, no Brasil e na América Latina, iniciativas voltadas especificamente a imigrantes – sobretudo migrantes econômicos – ainda são escassas, deixando de fora pessoas expostas ao aliciamento.
A distância entre a realidade do tráfico, frequentemente alimentado por falsas ofertas de emprego, e as políticas empresariais pouco estruturadas decorre, em grande medida, da discriminação contra o migrante[12]. Nesse contexto, programas corporativos de inclusão tornam-se estratégias essenciais de prevenção.
Exemplos latino-americanos mostram caminhos possíveis: no Brasil, o programa “Somos Todos Cuidadores”, da Sodexo, promove capacitação e inserção de migrantes, reduzindo a vulnerabilidade a intermediários ilícitos[13]. O Instituto Lojas Renner, com “Empoderando Refugiadas”, oferece formação profissional, educação financeira e apoio psicossocial, aumentando a autonomia de mulheres migrantes[14].
O Grupo Pão de Açúcar institucionalizou a contratação de refugiados e migrantes com mediação cultural e acompanhamento no trabalho[15], enquanto, na Argentina, o acordo Banco Ciudad–ACNUR facilita o acesso de imigrantes ao sistema financeiro, diminuindo a dependência de redes clandestinas[16].
Estudos indicam que migrantes em setores informais ou de baixa remuneração enfrentam maior risco de violações como retenção de salários, jornadas exaustivas e condições inseguras, agravadas por barreiras linguísticas e desconhecimento de direitos[17]. Por isso, programas empresariais devem incluir mecanismos de due diligence, auditoria de cadeias produtivas, treinamento de gestores e canais de denúncia multilíngues, alinhados às recomendações internacionais e capazes de reduzir riscos legais às próprias empresas[18].
Em síntese, a proteção de migrantes e o combate ao tráfico demandam responsabilidade compartilhada entre Estado e setor privado. O Dia Internacional dos Direitos Humanos, celebrado em 10 de dezembro, reforça essa urgência: programas empresariais de inclusão deixam de ser ações voluntárias e tornam-se ferramentas estratégicas para reduzir vulnerabilidades, prevenir o tráfico laboral e fortalecer o mercado formal. Ao expandir iniciativas inclusivas e reconhecer a vulnerabilidade estrutural dos migrantes, empresas na América Latina podem desempenhar papel decisivo no enfrentamento ao trabalho análogo à escravidão.
BUSINESS & HUMAN RIGHTS RESOURCE CENTRE. Migrant workers in global supply chains. [S. l.], 2025. Disponível em: https://www.business-humanrights.org/en/big-issues/labour-rights/migrant-workers-in-global-supply-chains/. Acesso em: 08 dez. 2025.
GOETHALS, Samantha. et al. Business Human Rights Responsibility for Refugees and Migrant Workers: Turning Policies into Practice in the Middle East. Business and Human Rights Journal, vol. 2, n. 2, 335–342, 2017. Disponível em: https://doi-org.peacepalace.idm.oclc.org/10.1017/bhj.2017.11. Acesso em: 4 dez. 2025. p. 342.
INSTITUTO LOJAS RENNER. Empoderando Refugiadas. Disponível em: https://www.institutolojasrenner.org.br/inclusao-socioprodutiva-de-mulheres/empoderando-refugiadas/. Acesso em: 4 dez. 2025.
JOKINEN, Anniina. OLLUS, Natalia. Exploitation of migrant workers and trafficking in human beings. In: PIOTROWICZ, R. RIJKEN, C. UHL, B. Routledge Handbook of Human Trafficking. 1ª ed. Abingdon: Routledge, 2017. https://doi-org.peacepalace.idm.oclc.org/10.4324/9781315709352.
KERCHER, Sofia. A contratação de refugiados pelo Grupo Pão de Açúcar. Você RH, 21 ago. 2025. Disponível em: https://vocerh.abril.com.br/politicasepraticas/a-contratacao-de-refugiados-pelo-grupo-pao-de-acucar/. Acesso em: 4 dez. 2025.
NYU GLOBALEX. Inter-American Human Rights System. [S. l.], 2025. Disponível em: https://www.nyulawglobal.org/globalex/inter_american_human_rights.html. Acesso em: 08 dez. 2025.
OFICINA DEL ALTO COMISIONADO DE LAS NACIONES UNIDAS PARA LOS DERECHOS HUMANOS. Un convenio inédito entre ACNUR y el Banco Ciudad permite a las personas refugiadas y migrantes acceder a servicios financieros en Argentina. 22 dez. 2020. Disponível em: https://www.acnur.org/noticias/comunicados-de-prensa/un-convenio-inedito-entre-acnur-y-el-banco-ciudad-permite-las. Acesso em: 4 dez. 2025.
OFICINA DEL ALTO COMISIONADO DE LAS NACIONES UNIDAS PARA LOS DERECHOS HUMANOS. Principios y directrices recomendados sobre derechos humanos y trata de personas. Nova York, 2002. Disponível em: https://acnudh.org/wp-content/uploads/2018/07/Principios-y-Directrices-recomendados-sobre-derechos-humanos-y-trata-de-personas.pdf. Acesso em: 3 dez. 2025.
SHARAPOV, Kiril. Trafficking in human beings and the informal economy. In: PIOTROWICZ, R. RIJKEN, C. UHL, B. Routledge Handbook of Human Trafficking. 1ª ed. Abingdon: Routledge, 2017. https://doi-org.peacepalace.idm.oclc.org/10.4324/9781315709352.
SODEXO. Somos Todos Cuidadores: a força da inclusão que transforma vidas. Sodexo Brasil, 18 jun. 2025. Disponível em: https://br.sodexo.com/blog/2025/somos-todos-cuidadores. Acesso em: 4 dez. 2025.
UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. Global Report on Trafficking in Persons 2024. Viena: UNODC Research, 2024. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/glotip/2024/GLOTIP2024_BOOK.pdf. Acesso em: 23 de novembro de 2025.
[1] OFICINA DEL ALTO COMISIONADO DE LAS NACIONES UNIDAS PARA LOS DERECHOS HUMANOS. Principios y directrices recomendados sobre derechos humanos y trata de personas. E/2002/68/Add. 1, 2002. Disponível em: https://acnudh.org/wp-content/uploads/2018/07/Principios-y-Directrices-recomendados-sobre-derechos-humanos-y-trata-de-personas.pdf. Acesso em: 3 dez. 2025.
[2] Por exemplo: INTER-AMERICAN COMMISSION ON HUMAN RIGHTS. Human mobility: rights, vulnerabilities and protection mechanisms. [S. l.], [2021?]. Disponível em: https://www.oas.org/en/iachr/reports/pdfs/humanmobility.pdf. Acesso em: 08 dez. 2025.
[3] NYU GLOBALEX. Inter-American Human Rights System. [S. l.], 2025. Disponível em: https://www.nyulawglobal.org/globalex/inter_american_human_rights.html. Acesso em: 08 dez. 2025.
[4] UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. Global Report on Trafficking in Persons 2024. Viena: UNODC Research, 2024. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/glotip/2024/GLOTIP2024_BOOK.pdf. Acesso em: 23 de novembro de 2025. p. 49.
[5] Ibidem. p. 140.
[6] Ibidem. p. 51.
[7] SHARAPOV, Kiril. Trafficking in human beings and the informal economy. In: PIOTROWICZ, R. RIJKEN, C. UHL, B. Routledge Handbook of Human Trafficking. 1ª ed. Abingdon: Routledge, 2017. https://doi-org.peacepalace.idm.oclc.org/10.4324/9781315709352.
[8] JOKINEN, Anniina. OLLUS, Natalia. Exploitation of migrant workers and trafficking in human beings. In: PIOTROWICZ, R. RIJKEN, C. UHL, B. Routledge Handbook of Human Trafficking. 1ª ed. Abingdon: Routledge, 2017. https://doi-org.peacepalace.idm.oclc.org/10.4324/9781315709352.
[9] UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. Op cit. p. 141.
[10] SHARAPOV, Kiril. Trafficking in human beings and the informal economy. In: PIOTROWICZ, R. RIJKEN, C. UHL, B. Routledge Handbook of Human Trafficking. 1ª ed. Abingdon: Routledge, 2017. https://doi-org.peacepalace.idm.oclc.org/10.4324/9781315709352.
[11] UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. Global Report on Trafficking in Persons 2024. Viena: UNODC Research, 2024. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/glotip/2024/GLOTIP2024_BOOK.pdf. Acesso em: 23 de novembro de 2025. p.
[12] JOKINEN, Anniina. OLLUS, Natalia. Exploitation of migrant workers and trafficking in human beings. In: PIOTROWICZ, R. RIJKEN, C. UHL, B. Routledge Handbook of Human Trafficking. 1ª ed. Abingdon: Routledge, 2017. https://doi-org.peacepalace.idm.oclc.org/10.4324/9781315709352.
[13] SODEXO. Somos Todos Cuidadores: a força da inclusão que transforma vidas. Sodexo Brasil, 18 jun. 2025. Disponível em: https://br.sodexo.com/blog/2025/somos-todos-cuidadores. Acesso em: 4 dez. 2025.
[14] INSTITUTO LOJAS RENNER. Empoderando Refugiadas. Disponível em: https://www.institutolojasrenner.org.br/inclusao-socioprodutiva-de-mulheres/empoderando-refugiadas/. Acesso em: 4 dez. 2025.
[15] KERCHER, Sofia. A contratação de refugiados pelo Grupo Pão de Açúcar. Você RH, 21 ago. 2025. Disponível em: https://vocerh.abril.com.br/politicasepraticas/a-contratacao-de-refugiados-pelo-grupo-pao-de-acucar/. Acesso em: 4 dez. 2025.
[16] OFICINA DEL ALTO COMISIONADO DE LAS NACIONES UNIDAS PARA LOS DERECHOS HUMANOS. Un convenio inédito entre ACNUR y el Banco Ciudad permite a las personas refugiadas y migrantes acceder a servicios financieros en Argentina. 22 dez. 2020. Disponível em: https://www.acnur.org/noticias/comunicados-de-prensa/un-convenio-inedito-entre-acnur-y-el-banco-ciudad-permite-las. Acesso em: 4 dez. 2025.
[17] BUSINESS & HUMAN RIGHTS RESOURCE CENTRE. Migrant workers in global supply chains. [S. l.], 2025. Disponível em: https://www.business-humanrights.org/en/big-issues/labour-rights/migrant-workers-in-global-supply-chains/. Acesso em: 08 dez. 2025.
[18] GOETHALS, Samentha. et al. Business Human Rights Responsibility for Refugees and Migrant Workers: Turning Policies into Practice in the Middle East. Business and Human Rights Journal, n. 2 (2017): 335–342. Disponível em: https://doi-org.peacepalace.idm.oclc.org/10.1017/bhj.2017.11. Acesso em: 4 dez. 2025. p. 342.