A força da rastreabilidade bovina na agenda dos ODS

As questões sociais, ambientais e éticas têm relação com a indústria da carne? Certamente, porque o desmatamento das florestas e os riscos das mudanças climáticas podem constituir riscos sistêmicos para a produção pecuária, ou seja, externalizações que mexem com o mercado financeiro e de capitais, uma vez que essa cadeia produtiva reúne elementos de materialidade financeira, com impactos sobre o valor de ativos.

Nesse sentido, a sustentabilidade da pecuária envolve inúmeras questões heterogêneas que vêm preocupando o mercado global pelo uso intensivo de água, de áreas para pastagens, erosão do solo etc. São somatórias de impactos cada vez maiores nos sistemas agroalimentares (produção, distribuição, consumo e descarte de alimentos) em um país como o Brasil que se destaca como um dos grandes players mundiais em segurança alimentar e conservação ambiental.

Um passo estratégico nesse cenário foi dado pelo Brasil ao implantar o Plano Nacional de Identificação Individual de Bovinos e Búfalos (PNIB), tornando a rastreabilidade do gado nacional obrigatória, uma demanda crescente do mercado externo por transparência e sustentabilidade da área pecuarista, que terá a seu favor o incremento da competitividade e governança.

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Para entender melhor a conexão entre ESG , rastreabilidade individual do gado e lei antidesmatamento europeia (EUDR) , vale recorrer à formulação do simbólica do chamado Bolo de Casamento dos ODS (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável) formulado pela Stockholm Resilience Centre, tendo como entusiasta o cientista sueco Johan Rockström.³  O modelo do bolo  tira os ODS de uma representação linear e os coloca distribuídos em  três camadas de forma integrada: Base (Biosfera  – ODS 6,13,14,15), Meio (Sociedade – ODS 1,2,3,4,5,7,11,16) e o Topo (Economia – ODS 8,9,10,12).

No processo da rastreabilidade há inúmeras etapas a serem vencidas, como as resistências culturais, lembrando que das 2,5 milhões de propriedades que atuam com pecuária no país, 1,9 milhão delas são de pequenos produtores. Parte deles entende que a rastreabilidade é uma exigência burocrática adicional, que aumenta custos e a fiscalização. O sucesso da transformação depende de políticas públicas que ofereçam incentivos financeiros, capacitação técnica, linhas de crédito específicas e simplificação de procedimentos na jornada da adoção da rastreabilidade do rebanho de gado nacional.

A adoção da rastreabilidade no país, maior exportador mundial de carne bovina do mundo, com 240 milhões de cabeças de gado, será por etapas. Na etapa 1, já em vigor, propicia suporte para registro e atualização das cabeças de gado; na etapa 2, com prazo até o final do próximo ano, os órgãos responsáveis pela sanidade agropecuária dos Estados terão de se adequar aos novos requisitos técnicos e garantir interoperabilidade com a base federal. A fase 3, de 2027 a 2029, fará a identificação e cadastro obrigatórios dos animais submetidos a manejo sanitários e protocolos do Ministério da Agricultura e, finalmente, a fase 4, estará vigente de 2030 até 2032, reforçando o registro e concluindo a implementação para identificação individual do gado. ¹

Ao garantir informação precisa sobre a vida produtiva de cada animal, a rastreabilidade fortalece a governança da cadeia, reduz assimetrias informacionais e oferece segurança jurídica aos frigoríficos e exportadores. Ademais, consolida bases de dados que permitem análises mais sofisticadas sobre emissões de carbono, uso da terra e riscos ambientais, reforçando indicadores ESG e ampliando a confiabilidade do produto brasileiro. Os principais frigoríficos do país, como JBS, Marfrig e Grupo Roncador, já iniciaram a rastreabilidade do rebanho de seus fornecedores, com brincos, bottons, chips e rastreabilidade por satélite para saber se o gado veio de áreas desmatadas, indígenas, quilombolas ou de fazendas sustentáveis.

A rastreabilidade é um sistema de acompanhamento contínuo da trajetória do animal ao longo de todo o ciclo produtivo. Embora o Brasil possua mecanismos operacionais, não abrange de forma integral o rebanho nacional, deixando lacunas na identificação individual e na comprovação da origem territorial.

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O avanço para a rastreabilidade individual obrigatória representa mudança paradigmática no controle sanitário, logístico e ambiental. Esse modelo envolve dispositivos com integração com bases geoespaciais (como o CAR – Cadastro Ambiental Rural) e vinculação a plataformas digitais nacionais.

Neste final de ano, a rastreabilidade do gado brasileiro recebeu um fôlego inesperado com a decisão da União Europeia de adiar pelo segundo ano consecutivo a vigência do Regulamento da União Europeia sobre o Desmatamento (EUDR), que proíbe países da UE de importar vários produtos, inclusive a carne bovina, de áreas desmatadas após 2020. A despeito de ganhar um prazo a mais, o rastreamento obrigatório da pecuária brasileira se coloca como uma resposta fundamental para cumprir as obrigações de conformidade mundial, liderada pela UE, para onde o Brasil exportou 11,2 mil toneladas de carne bovina este ano, com receita de US$93,2 milhões. ²

O EUDR estava previsto para viger no final de 2024, mas suas exigências de rastreabilidade foram consideradas complexas e foram flexibilizadas para serem implantadas em dezembro deste ano. O novo  adiamento do EUDR, contudo, vem sofrendo uma série de críticas, tanto de ativistas ambientais, por verem um retrocesso; quanto de corporações alimentícias, já preparadas para a implementação, diante de investimentos realizados e criação de incertezas em torno da lei.

Retomando o modelo do Bolo de Casamento dos ODS é importante ressalvar que o rastreamento individual do gado reorganiza a lógica do desenvolvimento sustentável e corrige uma visão histórica que colocava a economia no centro. O bolo deixa claro que não há desenvolvimento econômico possível sem um planeta funcional. Ou seja: clima estável, água limpa e biodiversidade são pré-condições para qualquer progresso social e econômico.

A metáfora rompe com a ideia de “caixinhas separadas”, uma vez que evidencia que não há agronegócio sem floresta preservada, não há redução da pobreza sem resiliência climática. O bolo também é uma crítica simbólica ao modelo tradicional de desenvolvimento. Historicamente, a economia foi colocada acima do meio ambiente. O bolo inverte essa lógica e afirma que a economia está no topo, justamente porque depende das bases sociais e ambientais.

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O simbolismo do bolo orienta políticas públicas e estratégias corporativas para planejar ações públicas, entender limites planetários, integrar ESG (boas práticas ambientais, sociais e de governança) nas estratégias, evitar políticas que promovam crescimento econômico às custas de degradação ambiental, sem esquecer a participação das partes interessadas (stakeholders).

O Bolo de Casamento dos ODS constitui um ponto de inflexão no desenvolvimento da pecuária brasileira. Embora o processo imponha desafios significativos, ele representa oportunidade histórica de modernização da cadeia produtiva, fortalecimento da governança e inserção competitiva do Brasil em mercados globais que cada vez mais valorizam a sustentabilidade. O êxito desse processo dependerá de cooperação entre governo, iniciativa privada e produtores, além de investimentos robustos em tecnologia, infraestrutura e capacitação. Ao trilhar esse caminho, o Brasil tem potencial para se tornar referência e comemorar uma produção pecuária responsável, ficar com uma boa fatia do bolo dos ODS, integrando desenvolvimento econômico, integridade socioambiental e inovação tecnológica.

¹https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2025/10/11/para-rastrear-rebanho-empresas-usam-brinco-e-ate-chip-no-boi.ghtml

²https://abiec.com.br/com-alta-de-15-no-ano-brasil-exporta-cerca-de-300-mil-toneladas-de-carne-bovina-em-agosto/

³https://www.stockholmresilience.org/research/research-news/2016-06-14-the-sdgs-wedding-cake.html

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