Contratos musicais na era do streaming

A 48ª Audiência Pública do Supremo Tribunal Federal, convocada pelo ministro Dias Toffoli no âmbito do ARE 1.542.420 (Tema 1.403 da Repercussão Geral), colocou em debate um tema crucial para a indústria musical no país: a validade e adaptabilidade de contratos de obras musicais firmados anteriormente à Lei n. 9.610/1998 diante da ascensão das plataformas de streaming. O caso paradigmático envolve os renomados compositores Roberto Carlos e os herdeiros de Erasmo Carlos contra a Editora Musical Fermata do Brasil, e ilustra a tensão entre o que chamaremos de “emoção das músicas” e “rigidez dos contratos”.

A controvérsia central: novas tecnologias, velhos contratos

No cerne da disputa está a alegação dos compositores de que os contratos firmados entre 1964 e 1987, que cediam os direitos patrimoniais para exploração de suas músicas de forma ampliada, não poderiam abranger os formatos digitais de streaming, inexistentes à época. Eles pleiteiam a rescisão desses acordos (ou a sua revisão, para que seja excluída a possibilidade de exploração via streaming), buscando uma remuneração mais justa e transparente na era digital. A Editora Fermata, por sua vez, argumenta que os direitos patrimoniais foram cedidos de forma definitiva e sob remuneração de mercado, garantindo-lhe o direito de explorar comercialmente as composições em qualquer formato, presente ou futuro, com a obrigação de repassar a participação dos autores e manter a transparência.

A Audiência Pública se debruçou sobre dois eixos principais: a exploração econômica de obras musicais na era digital, analisando o impacto do streaming no equilíbrio dos contratos que tratam de direitos patrimoniais dos autores e compositores musicais; e o direito dos criadores de fiscalizar a exploração de suas obras em plataformas digitais e obter remuneração justa. O Ministro Toffoli ressaltou que o que está em jogo é o embate entre criadores e agentes do mercado cultural em um cenário de contínuas mudanças tecnológicas. A questão fundamental que se impõe é se essa é uma discussão meramente contratual ou com contornos constitucionais, justificando a intervenção do STF.

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Os argumentos em confronto

A Audiência Pública revelou uma clara polarização de pontos de vista. Os representantes dos autores e compositores, como os advogados Letícia Provedel (advogada de Gilberto Gil) e Bérith Santana (advogado de Roberto Carlos e do espólio de Erasmo Carlos), defenderam a defasagem dos contratos antigos e a necessidade de sua reavaliação à luz da legislação posterior, classificando como “delírio” a ideia de que o streaming pudesse ser previsto nos anos 1960. Eles argumentaram que o arcabouço jurídico focado em mídias físicas não se comunica com a realidade atual.

Por outro lado, os co-autores deste artigo, Professores Miguel Gualano de Godoy (UFPR/UnB) – atuando na condição de parecerista – e Fernando José Gonçalves Acunha (IDP e UniCEUB, Brasília) – representando a Editora Fermata nos autos e na audiência pública –, enfatizaram a necessidade de manutenção da segurança jurídica. Eles contestaram a narrativa de antagonismo entre as partes dos autos, explicando que as editoras dependem e incentivam o sucesso dos compositores e que, no caso em questão, repassam a maior parte da receita (cerca de 75%) aos autores, arcando, entre outros, com os riscos do empreendimento. Refutaram as teses dos autores, destacando que os instrumentos analisados nos autos configuram contratos de cessão, e não de edição, conforme já reconhecido pelas instâncias ordinárias, que não houve falta de transparência e que a aplicação retroativa da Lei de Direitos Autorais atual violaria o princípio da irretroatividade e o ato jurídico perfeito.

Diversos especialistas falaram em nome de entidades interessadas no tema. Segundo o entendimento dos autores, destacam-se posições como a do Professor Gustavo Binenbojm (UERJ), o qual, representando a União Brasileira de Editores de Música, alertou que a ruptura de contratos anteriores à Lei de Direitos Autorais de 1998 configuraria violação ao devido processo legal, e que isolar os autores os enfraqueceria diante das grandes empresas de tecnologia.

Além dele, o Professor Carlos Ragazzo (FGV Direito-Rio) ponderou que inovações tecnológicas sempre tensionaram o direito autoral, mas a relação autor-editor permanece essencial. Ele ofereceu reflexão no sentido de que as editoras podem ser justamente as mais aptas a negociar com o streaming em nome dos autores e advertiu para o risco de um precedente que permitisse invalidar contratos a cada nova tecnologia. Em contrapartida, Déborah Sztajnberg (IAB) e Pedro Marques Nunes Barbosa (OAB/RJ) levantaram preocupações sobre a justiça remuneratória e a necessidade de critérios mais equitativos.

Em síntese, a Audiência Pública escancarou o conflito: de um lado, compositores e seus representantes clamando por revisão contratual e maior participação financeira; de outro, editoras e entidades defendendo a força vinculante dos contratos e buscando soluções através de negociação com plataformas e evolução legislativa, e não por intervenção judicial retroativa.

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Fundamentos jurídicos: a intangibilidade dos Contratos

A defesa da validade dos contratos antigos se apoia em sólidos pilares jurídicos. A discussão foca nos direitos patrimoniais de autor, já que os direitos morais são inalienáveis (art. 659 do Código Civil de 1916, art. 28 da Lei 5.988/1973 e art. 27 da Lei 9.610/1998). Os contratos de cessão desse patrimônio, firmados entre 1964 e 1987, por terem satisfeito as exigências da lei vigente à época, são considerados atos jurídicos perfeitos, merecedores de tutela constitucional. O art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal impede que leis supervenientes retroajam para modificar tais atos.

Isso significa que a Lei de Direitos Autorais atual (Lei 9.610/98), que em seu art. 49, V, limita as cessões de direitos autorais às modalidades de utilização existentes por ocasião do contrato, não pode ser aplicada retroativamente. Essa limitação simplesmente não existia no ordenamento jurídico anterior a 1998. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já confirmou, em mais de uma oportunidade (REsp 2148396/RJ e REsp 2029976/SP) que seria inviável aplicar a regra nova a contratos celebrados antes de sua vigência, em respeito ao princípio da irretroatividade das leis e à proteção dos atos jurídicos perfeitos.

Os contratos de cessão de Roberto e Erasmo, portanto, são válidos e eficazes até o término do prazo de proteção autoral (70 anos após a morte do autor), não admitindo resilição unilateral por arrependimento ou mudança tecnológica, já que não apresentam vícios de consentimento ou ilegalidade. Uma ruptura compulsória desses acordos violaria gravemente a segurança jurídica, abrindo um precedente perigoso que poderia ameaçar inúmeros contratos em diversos setores, contrariando a livre iniciativa e a estabilidade das relações jurídicas. A jurisprudência e a doutrina especializada, como a da Prof.ª Silmara Chinellato (USP), reforçam que esses contratos devem ser regidos pela lei da época de sua celebração.

Expectativas para o julgamento e precedentes internacionais

Embora o STF tenha reconhecido a repercussão geral do Tema 1.403 devido à presença de princípios constitucionais como a segurança jurídica e o valor social da criação intelectual, espera-se que a Corte confirme a prevalência dos contratos antigos. Este posicionamento estaria alinhado à segurança jurídica e a precedentes internacionais.

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Um exemplo notável é o recente caso envolvendo a Universal Music na Holanda. Na disputa, diversos autores que haviam realizado a cessão dos direitos patrimoniais de obras nas décadas de 1990 e 2000 buscaram aumento de royalties de streaming, argumentando que deveria ser tratado como “licenciamento”. O Tribunal de Amsterdã decidiu em favor da Universal, concluindo que os músicos não demonstraram descumprimento contratual, limitando-se a interpretar os contratos específicos em litígio.

No Brasil, a expectativa é que o STF não permita a rescisão ou revisão drástica dos contratos hígidos, tal como pretendido pelos autores. Em vez disso, crê-se que o caminho correto é que a decisão reafirme a validade dos pactos firmados (como feito por todas as instâncias judiciais até aqui) e, possivelmente, estabeleça diretrizes para o futuro, incentivando que novos contratos incluam cláusulas de adaptação tecnológica, o que necessariamente deve ser feito fundamentalmente com a participação de todos os envolvidos no tema, incluindo gravadoras e plataformas.

Este desfecho permitiria valorizar os criadores de forma prospectiva, sem abalar a confiança nos negócios jurídicos já consolidados. O STF pode, assim, conciliar a emoção com a legalidade: reconhecer a importância dos compositores sem romper com o princípio do pacta sunt servanda, com a proteção constitucional ao ato jurídico perfeito e com a estabilidade contratual que sustentam a indústria cultural. A mensagem subjacente, alinhada ao precedente holandês, é que contratos válidos devem ser honrados, cabendo ao mercado e ao legislador, mais do que ao Poder Judiciário, a tarefa de ajustar gradualmente as relações jurídicas à nova era do streaming.

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