A morte do jovem que invadiu a jaula de uma leoa em João Pessoa, nesta semana, nos convida a refletir sobre questões importantes e necessárias a respeito da Política Nacional de Saúde Mental. A cena apresentada nos noticiários, muitas vezes sem a devida reflexão e cuidado, expõe um cenário complexo, em que o sofrimento psíquico, a vulnerabilidade social e o cuidado em saúde mental se encontram revelando não só tensões ainda presentes na consolidação da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) no Brasil, mas também o modo como a sociedade se organiza (ou não) para proteger as pessoas em situação de vulnerabilidade.
A luta antimanicomial no Brasil ajudou a instituir um novo paradigma de cuidado em saúde mental, orientado pelo respeito à dignidade humana, pelo cuidado em liberdade, pela substituição progressiva do modelo asilar e pela validação das pessoas, celebrando suas diferenças. Porém, a efetivação da Reforma Psiquiátrica, instituída pela Lei 10.216/2001, ainda exige questões como a expansão dos serviços, trabalhadores qualificados, financiamento estável, articulação intersetorial e presença territorial para que o cuidado de fato aconteça.
O caso de Gerson, segundo noticiado, envolve um histórico de extrema pobreza, quebra de vínculo familiar, crises psiquiátricas e passagem por várias instituições. Todas essas experiências comprometeram profundamente o desenvolvimento de suas habilidades para vida. E esses elementos não constituem apenas o pano de fundo dessa tragédia, mas, sim, indicadores de que existiam necessidades complexas que demandavam acompanhamento prolongado e redes articuladas.
Ou seja, havia uma demanda de suporte social, para ele e sua família, que pudesse apoiá-los efetivamente em suas vidas cotidianas. Como sabemos, não existem soluções simples para problemas tão complexos. O que nós esperamos e merecemos não é ficar trancados, isolados do “risco de viver” e, sim, termos possibilidade de usufruir de uma vida plena e integral sustentadas a partir de uma perspectiva justa e equânime. Aqueles que mais necessitam devem receber mais.
A questão central não é perguntar onde o Estado falhou, mas refletir sobre como os diferentes serviços que compõem a proteção social (saúde, assistência, educação, justiça) podem se organizar de modo mais integrado, garantindo trabalho em rede, transições cuidadas e projetos terapêuticos capazes de sustentar trajetórias em sofrimento.
“Vaqueirinho”, como era conhecido, era egresso do sistema penitenciário, muito provavelmente em função da atual Política Antimanicomial do Poder Judiciário, instituída pela Resolução CNJ nº 487/2023, que visa reformular o tratamento de pessoas com transtornos mentais e em conflito com a lei, alinhando o sistema judiciário às políticas de saúde mental e aos direitos humanos. Como afirmado por um profissional do sistema penitenciário, em um dos vídeos veiculados pela mídia social, “o local dele, também, não era o presídio”. Ficamos com o desafio de responder à pergunta: Onde era mesmo o lugar de “Vaqueirinho”?
Será que seu “lugar” era viver permanentemente trancado nas prisões, nos hospitais psiquiátricos ou outras instituições asilares? Algumas pessoas podem se sentir à vontade para comentar: “Se tivesse preso, ainda estaria vivo”. Outros de nós seguimos nos perguntando se viver trancado é viver e afirmando que trancar não é tratar. O que, infelizmente, até as tragédias nos permitem concluir é que quanto mais as pessoas em sofrimento psíquico permanecem isoladas da sociedade (inclusive aquelas com demandas ou necessidades relacionadas ao consumo de álcool e outras drogas), menos desenvolvem habilidades relacionais (objetivas e subjetivas) para pertencer, e menos a própria sociedade se prepara para conviver com estas pessoas e as proteger adequadamente.
Afirmamos com a força que a experiência das reformas psiquiátricas do Brasil e do mundo nos permite, que uma Rede de Atenção Psicossocial baseada na comunidade, quando estruturada com solidez e continuidade, tem potência reconhecida para evitar desfechos extremos como este. Os Caps, as UBS com matriciamento em saúde mental, os centros de convivência, as residências terapêuticas, os Consultório na Rua e os leitos de Saúde Mental em hospital geral são componentes de uma rede cujo objetivo não é apenas tratar a crise (embora também seja esse um dos principais objetivos), mas prevenir seu agravamento.
O modelo defendido pela Reforma Psiquiátrica pressupõe cuidado cotidiano, vínculo, acompanhamento longitudinal, construção de autonomia e pertença comunal. Porém, para que isso se efetive, é necessário que a rede territorial esteja disponível, acessível e que tenha uma estrutura capaz de acompanhar sujeitos em condição de intensa vulnerabilidade, não apenas nos momentos agudos ou em contextos fechados.
Sendo assim, o que de fato essa tragédia nos permite concluir é que o sofrimento psíquico não pode ser manejado com respostas isoladas. Cercas altas parecem não nos proteger dos perigos. A circulação de “Vaqueirinho” entre escola, rua, abrigo, sistema de justiça e internação psiquiátrica indica mais do que um histórico pessoal, sugere que essa vida não encontrou, ao longo do tempo, um lugar fixo de referência de cuidado. Uma rede efetiva demanda corresponsabilização entre setores, fluxos de comunicação, continuidade no tratamento e acompanhamento intersetorial que permita construir com o sujeito uma trajetória possível.
Essa é a base da Política Nacional de Saúde Mental, que tem arcabouço legal, evidências técnicas e compromisso com direitos humanos. Seu fortalecimento não é apenas legítimo, é necessário. Casos como esse só nos revelam a urgência de políticas públicas que integrem saúde e proteção social, oferecendo cuidado contínuo, prevenção, projeto terapêutico singular e redes de pertencimento.
Visto isso, é importante colocar também que a Reforma Psiquiátrica Brasileira permanece em disputa, pois muitos são os interesses em jogo. Sua força só se revela quando a comunidade se torna lugar de cuidado e o tratamento ultrapassa os muros institucionais, reconhecendo que a saúde mental é atravessada por fatores sociais, econômicos, culturais e relacionais.
Se há algo que possamos aprender com essa morte, não é apenas a dimensão trágica do acontecimento, mas a necessidade de aprofundar e qualificar a política pública já instituída. O cuidado em liberdade continuará sendo o caminho mais ético, mais humano e potencialmente mais protetivo. Não podemos responder à tragédia com violência. Que o debate sobre esse caso não se limite ao impacto emocional da imagem final, mas provoque uma reflexão sobre o que precisamos sustentar, ampliar e integrar, para que trajetórias como essa possam, no futuro, encontrar a vida antes do desastre.
Pela história que nos contaram, “Vaqueirinho” sonhava com o impossível. Desejamos seguir sonhando. “Si Puo Fare!” (Você pode fazer!). É possível. Seguimos trabalhando pelo fortalecimento do SUS e da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Trata-se do imperativo da garantia de direitos, da autonomia possível, da pertença incondicional e firme presença coletiva. Afinal, o lugar do “Vaqueirinho”, como o de todas e todos nós, não deve ser em todo lugar?