A modulação de efeitos, embora incorporada de maneira constante ao vocabulário do Supremo Tribunal Federal, ainda é tratada como um tema periférico no debate público. No direito tributário, porém, ela deixou de ser exceção técnica para se transformar em fator determinante para o ambiente de negócios.
Hoje, diante de cada tese de grande impacto, o contribuinte já não se preocupa apenas com o mérito constitucional da controvérsia, mas com o momento em que o Tribunal definirá como e desde quando aquela decisão produzirá efeitos. E é precisamente nesse intervalo, entre a afirmação de um direito e sua concretização, que se forma a zona de maior incerteza jurídica.
O julgamento que excluiu o ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins é o exemplo paradigmático. A solução conferida pelo STF, correta em termos constitucionais, acabou acompanhada de uma modulação que restringiu significativamente a recuperação de valores pelos contribuintes que não haviam ingressado em juízo antes da fixação da tese. O que se viu foi um movimento que, embora justificado pelo impacto fiscal estimado, evidenciou como a modulação se converteu em instrumento de contenção orçamentária. A decisão ensinou, talvez de forma mais clara do que qualquer artigo doutrinário, que a previsibilidade tributária hoje depende tanto do mérito quanto do timing processual.
Essa realidade se repete em outras discussões relevantes, como a tributação de software, o DIFAL e a incidência de contribuições sociais. Em todos esses temas, o padrão se manteve: reconhecer o direito material do contribuinte, mas limitar sua fruição no tempo. A consequência é objetiva: a segurança jurídica, valor estruturante do sistema tributário, passa a conviver com uma lógica que prioriza o impacto fiscal em detrimento da estabilidade das relações econômicas previamente estabelecidas.
É preciso reconhecer que o STF enfrenta dilemas reais. A correção de interpretações tributárias equivocadas, consolidadas ao longo de décadas, pode gerar passivos expressivos. Mas, ao ampliar o uso da modulação como ferramenta quase automática, a Corte cria incentivos perversos. O contribuinte se vê compelido a judicializar preventivamente temas ainda incipientes, não por vocação litigiosa, mas pelo risco concreto de perder direitos reconhecidos apenas porque sua ação foi proposta após a “data de corte” definida na modulação. Esse tipo de comportamento defensivo aumenta artificialmente a litigiosidade e afasta o sistema tributário de sua função essencial: assegurar previsibilidade para a atividade econômica.
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A proteção da confiança legítima, princípio reconhecido pelo próprio STF, acaba relativizada. O contribuinte, que deveria contar com a estabilidade da jurisprudência e com a expectativa de que o Estado cumpra padrões mínimos de coerência temporal, passa a operar em um ambiente no qual decisões retroativas ou moduladas podem alterar a contabilidade de exercícios já encerrados. Mais do que uma questão técnica, trata-se de um elemento que compromete a capacidade de planejamento, afeta investimentos e gera distorções competitivas.
Por isso, o debate sobre modulação precisa deixar o espaço restrito dos tribunais e alcançar o setor produtivo, os formuladores de políticas públicas e a própria sociedade. A previsibilidade não é um luxo, mas um componente indispensável do ambiente econômico. A cada vez que a modulação é utilizada para mitigar efeitos financeiros do Estado às custas do contribuinte, reforça-se a percepção de que o sistema tributário brasileiro é marcado por instabilidade e por uma lógica assimétrica na distribuição de riscos.
O contribuinte, por sua vez, precisa ajustar sua estratégia. Em um cenário em que a modulação se consolidou como variável central, a litigância preventiva tornou-se parte do planejamento tributário responsável. Acompanhamento técnico qualificado, leitura cuidadosa da pauta de julgamentos e atuação tempestiva são hoje instrumentos tão importantes quanto o próprio conhecimento jurídico da matéria tributária.
No fim, a modulação de efeitos não pode ser normalizada como mecanismo corriqueiro de ajuste fiscal. Ela deve permanecer como exceção, aplicada com parcimônia e fundamentação rigorosa, sob pena de corroer a credibilidade do sistema jurídico. Enquanto isso não ocorre, resta ao contribuinte observar com atenção cada movimento do Tribunal, porque, no direito tributário contemporâneo, não basta ter razão: é preciso ter razão na hora certa.