Em Brasília, até as pedras portuguesas da Praça dos Três Poderes são unânimes em reconhecer a necessidade de recursos orçamentários, financeiros e humanos para que o Banco Central cumpra suas funções de guardião do poder de compra da moeda e de supervisor do Sistema Financeiro Nacional e, assim, continue entregando valores à sociedade, como o sistema de pagamentos Pix. O único ponto de divergência é a conformação jurídica e administrativa a ser dada a uma instituição tão singular quanto o BC.
Atualmente o Banco Central é uma autarquia federal especial, com personalidade jurídica de direito público. A PEC 65/2023 propõe a transformação do BC em uma instituição pública de direito privado. Para cumprir suas funções, enquanto instituição com funções de Estado, o BC exerce “poder de polícia”, faculdade que a administração pública possui em regular direitos em prol do interesse público.
No Banco Central o ciclo do poder de polícia é completo e se desenvolve em quatro etapas: a ordem de polícia, momento em que são emanadas as normas que irão regulamentar o Sistema Financeiro Nacional. É o momento crucial em que o Estado define o perímetro regulatório no qual um ente civil poderá agir e é exercido pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) e pelo próprio BC, por meio de resoluções, circulares e outros instrumentos normativos.
A segunda etapa é o consentimento de polícia, na qual, verificada as condições estabelecidas na ordem de polícia, o Estado emite a autorização para um ente poder atuar. No SFN compreendem as autorizações que as instituições e seus dirigentes recebem do BC para atuarem no sistema.
O terceiro aspecto representa a fiscalização de polícia. É o momento em que se verifica o cumprimento das ordens de polícia (regulamentos) e do consentimento de polícia (condições para funcionamento).
E, por fim, temos a sanção de polícia, que se consubstancia na aplicação de medidas punitivas às instituições. As medidas punitivas podem ser apenas financeiras, como multas e termos de compromisso, mas podem alcançar medidas mais gravosas, como o instituto da liquidação extrajudicial.
Quando se busca parâmetros de instituições de direito privado exercendo o poder de polícia, o único exemplo repetidamente apresentado é a Empresa de Transporte de Belo Horizonte S/A (BHTrans), sociedade de economia mista criada pelo legislativo de Belo Horizonte.
A BHTrans tem por finalidade planejar, organizar, dirigir, coordenar, executar e controlar a prestação de serviços públicos relativos a tráfego, trânsito, sistema viário e fiscalização do transporte público e o planejamento urbano do município. Por mais que sua atuação englobe vários aspectos do processo de poder de polícia, a diferenciação para as atividades exercidas pelo Banco Central é gritante.
Enquanto regulador do transporte público, a BHTrans pode exercer a fiscalização do transporte público, redirecionando o trânsito e afetando milhões de usuários de uma cidade. Já o BC, além dos objetivos de controle da inflação e de supervisor do SFN, possui monopólio de emissão de moeda, gestão das reservas internacionais do país, dentre tantas outras funções, podendo, assim, afetar a vida de todos os brasileiros.
Daí surge a dúvida: uma instituição de direito privado poderia baixar uma regulamentação a ser seguida por participantes do SFN e que, em alguns casos, o próprio BC é participante, como no sistema de meios de pagamento, caso do Pix? Atos de extrema força como a liquidação extrajudicial de instituições financeiras não poderiam ser objeto de contestações judiciais em função do Estado estar sendo representado por uma instituição de direito privado?
Funcionários regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), como propõe a PEC 65, que tem uma estabilidade relativa frente aos servidores públicos que se encontram sob o Regime Jurídico Único (RJU), teriam as mesmas condições de pleno exercício do poder de polícia, necessário ao cumprimento das funções de Estado?
Enfim, a mudança do regime jurídico do Banco Central não é uma medida sem consequências. As questões orçamentárias, financeiras e de pessoal devem ser resolvidas em uma configuração diferente daquela apresentada na PEC 65, de forma a não fragilizar a própria atuação da Autoridade Monetária. Afinal, estamos falando de uma instituição cujas ações impactam todos os cidadãos brasileiros.
Será que a operação de saneamento levada a cabo nesta terça-feira (18) pelo Banco Central sobre o Banco Master teria curso em uma instituição de direito privado? Seus funcionários regidos pela CLT teriam a autonomia necessária para tal atuação? O pleno poder de polícia teria sido exercido, como demonstrado? Será que vale à pena arriscar um modelo institucional de sucesso como o atual BC?