Cirurgia Robótica no SUS: um avanço necessário, mas ainda não para todos

A Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação do Complexo Econômico e Industrial do Ministério da Saúde publicou uma portaria no Diário Oficial da União, no último dia 30 de setembro, onde torna pública a decisão de incorporar, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a prostatectomia radical assistida por robô para o tratamento de pacientes com câncer de próstata clinicamente localizado ou localmente avançado.

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Sem dúvida, trata-se de um grande avanço tecnológico no campo da cirurgia oncológica da próstata. A cirurgia robótica representa um salto na precisão e na ergonomia do cirurgião, e é fundamental que o Sistema Único de Saúde (SUS) tenha acesso a essa tecnologia para avaliar sua custo-efetividade em larga escala.

Entretanto, o que causa preocupação são os argumentos utilizados para justificar essa incorporação e a falsa percepção de que todos os pacientes com indicação de prostatectomia radical — cirurgia destinada à remoção do câncer localizado ou localmente avançado da próstata — passarão a ter acesso a essa tecnologia avançada com benefícios “incontestáveis”. Como professor universitário, pesquisador e cirurgião atuante exatamente nessa fronteira da ciência, considero importante trazer algumas reflexões baseadas em evidências científicas e experiência prática.

Em 2015, no Hospital Universitário Pedro Ernesto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – HUPE UERJ, desenvolvemos uma nova técnica cirúrgica baseada nos princípios da cirurgia robótica, mas realizada de forma aberta, com uma pequena incisão semelhante à de uma cesariana, utilizando material e instrumentos de baixo custo. Denominamos o método “Prostatectomia Radical Retro Púbica Anterógrada Anatômica”, ou, em inglês, Open Anterograde Anatomical Radical Retropubic Prostatectomy (AORP).

Com a chegada do robô Da Vinci à UERJ em 2019, criamos um protocolo pioneiro para avaliar o uso da cirurgia robótica no SUS, em casos de câncer de próstata, bexiga e rim cadastrado na Plataforma Brasil CAAE 07666819.2.0000.5259. Desde então, temos publicado resultados em periódicos e congressos nacionais e internacionais, demonstrando o desempenho dessas técnicas em pacientes do sistema público brasileiro SUS (Carrerette et al., 2017; 2019; 2023).

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O relatório técnico que embasou a decisão da CONITEC cita estudos antigos — como o de Ramsay et al. (2012) — que apontam menor perda sanguínea e tempo de internação na cirurgia robótica em comparação à aberta. No entanto, essas diferenças são estatisticamente pequenas e clinicamente irrelevantes.

A metanálise mais robusta sobre o tema, publicada na Cochrane Database (Ilic et al., 2017), analisou os principais ensaios randomizados e concluiu que não há diferença significativa entre as técnicas robótica e aberta quanto a desfechos oncológicos, continência urinária, função sexual ou complicações pós-operatórias.

Em nossa experiência, os resultados da técnica anterógrada aberta (AORP) são equivalentes aos da cirurgia robótica. Em um estudo publicado em 2023, o sangramento médio foi de 300 mL — praticamente idêntico aos valores relatados na literatura mundial para a cirurgia robótica. Outro trabalho prospectivo, também de 2023, mostrou diferença de apenas 190 mL entre as duas técnicas (371 mL na anterógrada vs. 180 mL na robótica), sem relevância clínica, ou seja, sem necessidade de transfusão sanguínea. O tempo de internação foi menor na robótica (3,7 dias vs. 2,4 dias), enquanto o tempo cirúrgico da robótica foi superior (183 minutos vs. 118 minutos), equilibrando os resultados, principalmente no que diz respeito aos custos, pois uma hora a mais no centro cirúrgico pode ser mais cara que 12 horas a mais na enfermaria ou quarto.

Esses dados demonstram que a superioridade clínica da robótica é, no mínimo, discutível, sobretudo quando técnicas abertas modernas são aplicadas com a mesma filosofia de realização, técnicas anterógradas.

O argumento econômico também merece cautela. O próprio estudo de Leow et al. (2016), frequentemente citado como evidência de custo-efetividade, mostra que a cirurgia robótica teve custos US$ 4.528 maiores por procedimento do que a aberta, além de demandar mais de duas horas adicionais de sala cirúrgica.

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Em um estudo que realizamos no HUPE/UERJ, a AORP custou em média R$ 6.900, enquanto a cirurgia robótica atingiu R$ 25.400, uma diferença de R$ 18.500 por paciente — sem considerar o custo do próprio robô, em torno de R$ 12 milhões. Como, então, afirmar que se trata de uma tecnologia “custo-efetiva”? Enquanto mesmo as referências citadas no parecer indicam o contrário.

Outro equívoco comum é acreditar que a simples aquisição do robô por hospitais públicos garantirá acesso universal. No Hospital Universitário Pedro Ernesto (UERJ), referência em oncologia urológica, apenas 2 em cada 10 pacientes (20%) com indicação cirúrgica para câncer de próstata têm acesso à técnica robótica. Essa proporção se repete em diversos centros do país, revelando que a disponibilidade do equipamento, por si só, não resolve as barreiras estruturais, orçamentárias e de formação profissional necessárias para o uso adequado da tecnologia.

Enquanto a cirurgia aberta ou a técnica AORP pode ser realizada em salas de médio porte, com anestesia regional e duração média de 2 horas, a cirurgia robótica exige infraestrutura altamente especializada, anestesia geral complexa e cerca de 5 horas de centro cirúrgico. Isso implica maior custo de manutenção, necessidade de equipes numerosas e altamente treinadas e dependência de insumos importados de alto valor. Portanto, a adoção em larga escala no SUS, com a atual estrutura e orçamento, é logisticamente e economicamente inviável.

A incorporação da cirurgia robótica ao SUS é um passo importante — não para universalizar seu uso, mas para produzir conhecimento científico nacional e avaliar seu real impacto clínico e econômico. Essa é uma oportunidade de ouro para que universidades e hospitais de ensino assumam protagonismo na geração de evidências brasileiras, conduzindo estudos comparativos, formando profissionais capacitados e ajudando a definir critérios técnicos de indicação e avaliação de resultados. O desafio é transformar a novidade tecnológica em benefício sustentável, evitando que ela se torne apenas um símbolo de modernidade sem alcance real para a maioria da população.

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Mais do que assistencialismo tecnológico, o que o país precisa é de pesquisa e inovação próprias. Desenvolver plataformas robóticas nacionais, de menor custo e manutenção simplificada, é o caminho para democratizar o acesso e garantir soberania tecnológica em saúde. Isso exige políticas públicas de fomento à indústria nacional, parcerias entre universidades e empresas, e uma visão de Estado que reconheça a tecnologia como instrumento de autonomia e justiça social.

A criação de linhas de financiamento específicas para pesquisa aplicada, o estímulo a startups médicas e a inserção de engenharia biomédica em programas de inovação hospitalar podem impulsionar essa transformação. A robótica não deve ser um privilégio de poucos, mas uma ferramenta a serviço de todos. Para isso, é preciso vontade política, planejamento e investimento contínuo em ciência e educação.

O futuro da cirurgia no Brasil depende menos da importação de robôs e mais da capacidade de o país produzir soluções inteligentes, acessíveis e seguras, capazes de atender, com qualidade, todos os brasileiros — e não apenas uma parcela deles. Somente quando o avanço tecnológico caminhar lado a lado com a equidade e a sustentabilidade, poderemos afirmar que a robótica, de fato, chegou ao SUS.

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