O Brasil pode ser exportador de conhecimento, diz enviado especial da COP30 para a agricultura

Com uma trajetória que inclui o comando do Ministério da Agricultura, a coordenação do Centro de Agronegócio da FGV e décadas de atuação em defesa do cooperativismo, Roberto Rodrigues é o enviado especial para a agricultura na COP30.

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Aos 83 anos, ele articula a construção de um documento único que represente o setor na conferência e proponha uma narrativa integrada sobre o papel do Brasil diante dos principais desafios globais: segurança alimentar, transição energética, mudanças climáticas e desigualdade social.

Em entrevista ao JOTA, ele afirmou que, embora celebre os avanços tecnológicos da agricultura brasileira, também reconhece os dilemas enfrentados pelo país. A maior parte das emissões de gases de efeito estufa no Brasil ainda está ligada às mudanças no uso da terra, com destaque para o desmatamento ilegal. 

“Vamos reconhecer os erros e deixar claro que ilegalidades não são cometidas pelos agricultores ou pelas empresas, mas por criminosos”, diz Rodrigues.

Neste contexto, ele defende que o país assuma uma posição de liderança internacional com base em conhecimento técnico, cooperação entre cadeias produtivas e reconhecimento dos problemas que ainda precisam ser enfrentados.

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A seguir, confira a entrevista completa.

Como tem sido o seu papel como enviado especial e a articulação com o agro em relação à COP30? 

Aceitei o desafio porque o embaixador André Corrêa do Lago tem um mandato claro: implementar as decisões desta COP e das anteriores. Não é discurso vazio. É prático. Criamos um grupo de trabalho com técnicos de várias entidades para preparar um documento em duas partes.

A primeira conta a história da agricultura brasileira nos últimos 50 anos sob a ótica da ciência e tecnologia, que inclui produtividade, empregos, renda, exportação. Inclui insumos, máquinas, sementes, logística, tudo. A segunda parte tem três capítulos: mostrar como o modelo brasileiro pode ser replicado no mundo tropical para enfrentar os quatro “Cavaleiros do Apocalipse”, ou seja, garantir a segurança alimentar, promover a transição energética, enfrentar as mudanças climáticas e reduzir a desigualdade social.

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Também vamos propor a revisão do protecionismo internacional para permitir o comércio justo e reconhecer problemas internos, como desmatamento ilegal e garimpo, que não vêm do agricultor, mas precisam ser resolvidos com apoio internacional. 

Esse documento deve estar pronto até setembro e será apresentado ao embaixador André Corrêa do Lago e ao Ministério da Agricultura. A ideia é que seja um texto único do agronegócio brasileiro.

O senhor mencionou que o texto reconhecerá os problemas, como o desmatamento ilegal. Como lidar com as consequências que a criminalidade na área ambiental trouxe para o agro?

Ao contar a história real, ficará claro o que é ilegal e o que é legítimo. Vamos reconhecer os erros e deixar claro que ilegalidades não são cometidas pelos agricultores ou pelas empresas, mas por criminosos. Queremos que os bandidos sejam punidos. Todo o texto será construído com as instituições de classe, que representam as empresas, e também com apoio acadêmico. Há muita gente envolvida nesse esforço, é um trabalho amplo e coletivo.

O senhor acredita que a situação está melhorando?

A imagem do agro melhorou, mas ainda é pesada. O mundo inteiro sabe que o produtor brasileiro não desmata. Mas a concorrência usa o argumento de que desmatamento ilegal é obra do produtor. Isso é falso, mas enquanto houver ilegalidade, a crítica encontra espaço. Por isso precisamos eliminar o que é ilegal. Caso contrário, ficaremos a vida inteira dizendo que fazemos tudo certo enquanto somos acusados do contrário.

Qual é o potencial dos biocombustíveis brasileiros?

Vamos apresentar dados técnicos. O etanol emite apenas 11% do que a gasolina emite, o biodiesel 18% em comparação ao diesel. A cogeração e outras formas de bioenergia também têm resultados muito positivos. Isso significa mais saúde para a população, menos importação de petróleo, menos emissões. Os países tropicais têm espaço para expandir sua produção energética e criar modelos de desenvolvimento sustentável via agricultura e energia.

Queremos também acabar com a discussão entre Brasil e Estados Unidos sobre etanol. Em vez de competir, deveríamos apresentar ao mundo, juntos, uma solução universal. O Brasil deve ser exportador de conhecimento, não apenas de produto. Queremos ensinar a plantar, a construir usinas, a integrar lavoura e pecuária, a fechar ciclos produtivos. O Brasil já sabe fazer isso e pode compartilhar esse know-how.

E o que seria necessário em termos de políticas públicas para fortalecer esse papel do agro?

O Brasil tem condições de assumir um protagonismo global inédito. Já temos estudos que mostram que a produção mundial de alimentos precisa crescer 20% em dez anos para evitar a fome. Os Estados Unidos podem crescer no máximo 12%, o Canadá 10%, a Europa 13%, a Ásia 16 a 20%. Só o Brasil pode crescer 40% em dez anos. Portanto, temos uma responsabilidade global. Mas, para isso, precisamos fazer a lição de casa. 

Primeiro, investir em ciência e tecnologia, pois foi isso que nos trouxe até aqui. Hoje a Embrapa e as universidades sofrem com falta de recursos. Por isso, estamos criando um fundo privado para pesquisa na Embrapa.

Segundo, precisamos de infraestrutura. O Brasil cresceu no Centro-Oeste espetacularmente, mas sem trem, sem porto, sem armazém. É preciso investir em logística, com parcerias público-privadas, que só funcionam com segurança jurídica.

Terceiro, precisamos de acordos comerciais. Hoje, cerca de 40% do comércio internacional ocorre entre países que têm acordos entre si. O Brasil tem poucos. Precisamos de um acordo com a China, com a Índia, com a União Europeia. Sem isso, o produtor pode produzir e ficar sem mercado. Esses três pontos são centrais em uma estratégia de desenvolvimento para que o Brasil seja o protagonista no projeto de acabar com a fome no mundo.

Nesse contexto, como as cooperativas se inserem no mercado nacional e internacional?

Precisamos trabalhar políticas de renda no campo e estimular o cooperativismo. Hoje, as cooperativas já representam 54% da produção brasileira, mas podem crescer mais. No Brasil há cerca de 5 milhões de propriedades rurais, mas apenas 1 milhão está no mercado. Os outros 4 milhões são de pequenos produtores que vivem na miséria. Eles só podem entrar no mercado por meio de cooperativas. Subsídio não haverá, porque o governo não tem dinheiro. A cooperação é o único caminho. Inclusive, 2025 foi declarado pela ONU o Ano Internacional das Cooperativas.

A crise recente com os Estados Unidos e as novas relações com a China mostram como o agro é impactado pela diplomacia internacional. Como o senhor vê a relação entre acordos comerciais e negociações climáticas?

As instituições multilaterais criadas no pós-guerra perderam protagonismo. A ONU, a FAO, a OMC, ninguém sabe mais o que essas instituições fazem. Isso abriu espaço para cada país agir sozinho, o que gera insegurança global. A invasão da Ucrânia pela Rússia, a crise em Israel, a situação da Venezuela, tudo isso mostra que vivemos a era da incerteza. O multilateralismo se enfraqueceu e o mundo perdeu a direção. Isso aumenta os riscos para a paz e para a democracia. Diante disso, acredito que haverá uma reorganização global entre países e blocos de países.

Vejo um espaço importante para o Brasil nesse contexto. O Ocidente se opõe à Ásia, mas o Brasil é um país ocidental que depende profundamente da China. Isso pode ser um problema, mas também uma oportunidade. O Brasil tem condições de ter um papel diferente no mundo, se tiver visão de longo prazo e abandonar a polarização interna. Somos um grande país, precisamos ter grandeza. Para isso, falta educação. Se não fizermos um investimento vigoroso em educação, perderemos o trem da história.

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O senhor costuma dizer que “o agro é paz”. Como o Brasil pode contribuir para a segurança alimentar?

Entre 1990 e hoje, a área plantada com grãos cresceu 111%, mas a produção cresceu 456%. É um número astronômico, que só foi possível graças à tecnologia. Com duas ou três safras na mesma área, produzimos mais sem expandir, poupando 127 milhões de hectares de desmatamento. Em 2000, exportávamos US$ 20 bilhões em produtos do agro, em 2024 exportamos US$ 165 bilhões. Passamos de 20 para 190 países atendidos. Exportamos açúcar, óleo de soja, carne, alimentos processados. A indústria brasileira de alimentos compra 62% da nossa safra. A exportação aumentou oito vezes em 23 anos. Ou seja, produzimos comida de qualidade para o mundo. É um crescimento sem paralelo no planeta. Por isso, precisamos de acordos comerciais que nos garantem espaço no futuro. Amanhã a África vai aprender a produzir e será nossa concorrente. Se tivermos acordos comerciais, poderemos continuar crescendo e contribuindo para eliminar a fome.

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