A cena é de realismo institucional brasileiro: uma deputada condenada criminalmente com trânsito em julgado, foragida, presa no exterior, sem exercer o mandato – e, ainda assim, “salva” pelo plenário da Câmara na madrugada.
No dia seguinte, o Supremo Tribunal Federal anula a deliberação parlamentar e determina a perda imediata do mandato, com posse do suplente em 48 horas. Em seguida, líderes partidários vociferam “usurpação”, “ditadura” e “derrubada do voto popular”, como se a Constituição tivesse virado um panfleto opcional.
O episódio Carla Zambelli não é apenas mais uma crise entre Poderes. É um teste de estresse sobre uma pergunta elementar: um mandato parlamentar é um vínculo de representação ou um escudo pessoal contra as consequências do direito penal? Quando a resposta prática do Parlamento tende ao escudo, a democracia não está se protegendo: está se autossabotando.
O debate jurídico costuma começar – e, muitas vezes, terminar – no art. 55 da Constituição. Ali está o enunciado categórico:“perderá o mandato o Deputado ou Senador” em hipóteses expressamente listadas, dentre elas “sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado” (inciso VI). Só que o § 2º, por sua vez, atribui à Casa legislativa a decisão sobre a perda do mandato em algumas dessas hipóteses (I, II e VI).
Durante anos, essa combinação foi lida como um “tranco” textual: o caput promete consequência automática; o parágrafo devolve a chave ao plenário. O resultado histórico foi o pior dos mundos: a Constituição cria um dever e, no mesmo fôlego, oferece a tentação de descumpri-lo sob o rótulo de “autonomia do Parlamento”.
Há, porém, uma diferença decisiva – e frequentemente ignorada no calor das redes – entre autonomia e arbítrio. Autonomia parlamentar não é licença para fabricar um direito de fugir, nem para produzir um habeas corpus corporativo por votação. Separação de Poderes não é um biombo para blindagem de condenados. Se a Constituição diz “perderá”, não faz sentido que a vontade ocasional da maioria transforme isso em “perderá se a corporação quiser”.
A tensão, reconheça-se, não é nova. O STF oscilou ao longo do tempo sobre o grau de participação do Legislativo na perda de mandato após condenação penal definitiva. Mas o caso atual tem dois elementos que mudam o peso da balança: o primeiro é político-institucional; o segundo é jurídico-formal.
O elemento político-institucional é óbvio e desconfortável: a deliberação parlamentar não foi um exercício neutro de prudência constitucional. Foi um gesto de autoproteção corporativa em cadeia, tão previsível quanto indecoroso. Quando a Câmara decide manter o mandato de uma parlamentar condenada e ausente, ela não está defendendo “o voto popular”. Está defendendo a mensagem que realmente importa para seus membros: “mandato é trincheira”.
O elemento jurídico-formal é ainda mais constrangedor para quem tenta vender a narrativa da “soberania secreta” do plenário. A própria Constituição foi emendada para ampliar transparência nessas deliberações. A Emenda Constitucional 76/2013 aboliu o voto secreto nos processos de perda de mandato de deputado e senador, justamente para impedir que decisões dessa natureza fossem tomadas no escuro, com a irresponsabilidade típica da madrugada. Em outras palavras: o constituinte derivado já reconheceu o risco do corporativismo e tentou reduzir seu combustível.
Não por acaso, a reação retórica mais barulhenta a Alexandre de Moraes vem embalada em duas frases prontas: “um ministro derrubou a decisão soberana da Câmara” e “um homem passou por cima da vontade do povo”. Ambas são sedutoras, ambas são erradas – e a razão não exige malabarismo.
Primeiro, “soberania” não é atributo de plenário. Soberania é do povo e se exerce nos termos da Constituição. O Parlamento é poder constituído. E poder constituído não tem soberania para contrariar decisão judicial definitiva, nem para fabricar imunidade material ao trânsito em julgado. Quando o Judiciário cumpre o papel de garantir eficácia a uma condenação penal transitada em julgado – especialmente em caso que impede o exercício regular do mandato – ele não “passa por cima” da democracia: ele impede que a democracia seja sequestrada por um mandato transformado em bunker.
Segundo, “vontade do povo” não se confunde com “direito adquirido ao cargo”. O voto popular cria legitimidade para representar; não cria salvo-conduto para descumprir decisões judiciais, menos ainda para abandonar o país e o Parlamento. A vontade popular não elegeu uma fugitiva. Ela elegeu uma representante, submetida às mesmas regras do jogo constitucional. Mandato é função, não propriedade.
É aqui que o gesto do STF – anular a deliberação e determinar a perda imediata do mandato – deve ser lido com menos histeria e mais teoria do Estado. Se o Parlamento pudesse, por decisão política, manter no cargo alguém condenado definitivamente, ausente e preso no exterior, estaríamos diante de uma mutação constitucional informal: o art. 55 viraria um dispositivo decorativo, e a condenação penal passaria a depender do humor corporativo do plenário. Isso não é “equilíbrio entre Poderes”. Isso é captura do texto constitucional.
Há quem diga: “mas o § 2º do art. 55 manda decidir no plenário”. Sim, manda. Mas nenhuma leitura honesta desse § 2º pode transformar o plenário em instância revisora de coisa julgada penal, nem autorizar que a Câmara neutralize, por conveniência política, os efeitos institucionais de uma condenação definitiva. A cláusula de decisão do plenário existe – historicamente – para tratar de conflitos de decoro e prerrogativas; não para instituir um salvo-conduto ao condenado que, por seus próprios atos, tornou impossível o exercício do mandato.
Se o Parlamento insiste em usar o § 2º como escudo automático, o STF inevitavelmente será empurrado para uma posição mais assertiva, sob pena de a Constituição perder densidade normativa. E aqui há um ponto que o Brasil precisa encarar sem maniqueísmo: uma democracia também morre quando o Judiciário é constrangido a assistir, impotente, à fabricação legislativa de impunidade. O problema não é “STF forte” versus “Congresso forte”. O problema é: Constituição forte ou Constituição negociável.
O caso Zambelli deveria, por fim, servir de gatilho para uma correção institucional que o Brasil adia há tempo demais: clarificar, sem ambiguidades operacionais, que condenação penal com trânsito em julgado incompatível com o exercício do mandato produz vacância objetiva, cabendo ao Parlamento apenas a formalização imediata.
Se o sistema quer preservar a ideia de deliberação política do plenário, que o faça onde ela faz sentido: no juízo de decoro e nas hipóteses que demandam avaliação institucional. Mas não no ponto em que o Estado de Direito começa a virar teatro.
Porque, se a regra prática for “condena, foge, e a corporação te salva”, o que estará em jogo não é separação de Poderes. Será a própria noção de República: a ideia de que ninguém – nem parlamentar – está acima da lei. A madrugada pode até produzir 227 votos. Mas não pode produzir uma nova Constituição.