O papel estratégico da advocacia pública no enfrentamento à violência contra mulheres

Nas últimas semanas, uma série assustadora de casos de feminicídios e tentativas de feminicídio ocuparam as notícias em todos os meios de comunicação. Em diversos estados, mulheres perderam suas vidas ou foram brutalmente agredidas por companheiros, ex-companheiros, colegas de trabalho e até por desconhecidos.

Esses episódios reiteram o quanto a violência de gênero permanece uma tragédia nacional. Nesse momento, é oportuno pontuar que não se trata de um fenômeno isolado, mas parte de uma estrutura de desigualdade profundamente enraizada na sociedade brasileira e, principalmente, questionar como as instituições podem trabalhar para mudar essa realidade.

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O Anuário Brasileiro de Segurança Pública[1] lançado em julho de 2025 trouxe os números do aumento preocupante da violência contra mulheres, crianças e adolescentes, com recordes em feminicídios, estupros e desaparecimentos. No último ano, no mínimo quatro mulheres morreram vítimas de feminicídio no Brasil diariamente.

O Anuário também apontou que 2024 foi o ano com maior número de registro de estupros e estupros de vulneráveis da história. Dentre essas vítimas, 76,8% eram pessoas vulneráveis, 87,7% eram do sexo feminino e 55,6% eram mulheres negras. Além disso, 65,7% dos casos ocorreram dentro de casa, revelando a centralidade do ambiente doméstico como local de violência.

Esses números não são casuais. As estatísticas evidenciam que a violência contra mulheres é consequência direta de desigualdades históricas de gênero, raça e classe que produzem contextos de vulnerabilidade sistêmica. Resta claro, portanto, que, para interromper esse ciclo perverso, não basta apenas reagir à violência após sua ocorrência: é imprescindível prevenir, intervir de forma proativa e construir políticas públicas robustas de proteção e promoção da igualdade.

No campo das políticas públicas, é imperativo investir em intervenções baseadas em evidências que permitam enfrentar o problema de forma eficaz e sustentável[2]. Nesse ponto, destaca-se que a vulnerabilidade econômica amplia os riscos de vulnerabilidade à violência doméstica. A fragilidade econômica traz consequências que vão além da renda. Ela implica dependência financeira, falta de autonomia patrimonial e barreiras de acesso a serviços públicos, fatores que limitam a capacidade da mulher de romper ciclos de abuso[3].

Embora avanços quantitativos tenham sido registrados nas últimas décadas, os indicadores sociais revelam que mulheres, principalmente mulheres negras, continuam situadas na base da pirâmide socioeconômica. Elas enfrentam menores oportunidades de inserção no mercado de trabalho, rendimento médio substancialmente inferior ao dos homens e maior concentração em ocupações informais ou de baixa proteção social[4].

Nesse contexto, tem-se verificado a adoção, pelo Estado brasileiro, de um conjunto crescente de políticas públicas que pretendem enfrentar essas desigualdades de forma estrutural. Para além da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), marco fundamental na seara criminal, observa-se a necessidade urgente de se avançar também em incentivos e mecanismos concretos para promover a autonomia econômica das mulheres, em especial as vítimas de violência.

Há bons exemplos na legislação, como a Lei 14.133/2021 (nova Lei de Licitações), que introduziu dispositivos que permitem e estimulam a contratação de mulheres nessa condição como critério de desempate ou política de fomento, reconhecendo que autonomia financeira é elemento essencial para garantir proteção e reconstrução da vida após situações de violência. Já a Lei 14.542/2023 reservou 10% das vagas intermediadas pelo Sistema Nacional de Emprego (Sine) para mulheres em situação de violência doméstica ou familiar.

No âmbito do Poder Executivo Federal, temos como exemplo de instrumento estratégico o Programa Mulher Cidadã, do Ministério da Fazenda, cujas ações são voltadas à redução da vulnerabilidade social de mulheres através da promoção de autonomia financeira. O programa oferece orientação sobre direitos no âmbito tributário e mecanismos de formalização de atividades produtivas, contribuindo para que mulheres em situação de pobreza, responsáveis por domicílios e vítimas de violência tenham maiores condições de gerir recursos, acessar crédito, empreender e planejar sua vida econômica[5].

Essas iniciativas revelam o início do esforço estatal de incorporar a perspectiva de gênero como eixo estruturante das políticas públicas. A materialização dessas políticas, bem como a aplicação das políticas já existentes, exige desenho jurídico adequado, interpretação normativa sensível às desigualdades estruturais e atuação institucional coordenada. É nesse ponto que o papel da advocacia pública se torna central.

A advocacia pública exerce funções essenciais na formulação, implementação e na defesa jurídica das políticas públicas. Assim, um recorte de gênero aplicado à atuação da advocacia pública é fundamental para que políticas destinadas às mulheres sejam viáveis, juridicamente sólidas e efetivamente capacitadas a produzir transformação social, como nos exemplos acima citados.

Outro exemplo recente e significativo dessa atuação estratégica está no parecer da Consultoria-Geral da União, aprovado pelo presidente da República em fevereiro de 2025, que assegura a servidoras públicas federais vítimas de violência doméstica o direito à remoção de sua localidade de trabalho. O parecer reconhece que a mudança de local pode ser crucial para interromper a condição de vulnerabilidade quando há lesão comprovada à integridade física ou mental da vítima, ou mediante deferimento judicial de medida protetiva[6].

Trata-se de interpretação normativa sensível às desigualdades de gênero. Ao ir além da literalidade da lei, a AGU conectou o direito à remoção previsto na Lei nº 8.112/1990 aos princípios constitucionais da dignidade humana e da proteção integral às mulheres, reconhecendo que a permanência em determinado local pode perpetuar ciclos de violência. Além disso, preserva-se a autonomia econômica da vítima, que não se vê obrigada a abandonar o cargo para fugir do agressor.

Esse parecer, agora vinculante para toda a Administração Pública federal, exemplifica como a advocacia pública pode exercer papel transformador, não apenas validando políticas, mas construindo pontes jurídicas entre normas existentes e a necessidade de proteger vidas em casos concretos. Cabe ao advogado e à advogada pública não apenas assegurar a conformidade constitucional e legal das iniciativas, mas também interpretar o ordenamento à luz dos princípios da igualdade e da não discriminação.

O enfrentamento à violência de gênero não se esgota na punição dos agressores: ele se consolida quando o Estado, através de suas instituições, garante às mulheres as condições concretas para reconstruírem suas vidas com dignidade, segurança e independência. Este é o compromisso que a advocacia pública brasileira deve assumir para que as estatísticas alarmantes de hoje se transformem em memória superada amanhã.

[1] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 19º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2025. Disponível em: anuario-2025.pdf. Acesso em 09 dez. 2025.

[2] WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). WHO Multi-country Study on Women’s Health and Domestic Violence against Women. Geneva: WHO, 2005. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9241593512?utm_.  Acesso em 09 dez. 2025.

[3] SHAH, Manisha; BARSKI, Lydia. Intimate Partner Violence in Low- and Middle-Income Countries: Insights from Economic Research. National Bureau of Economic Research, 2025. Working Paper Series No. 34337. Disponível em: https://doi.org/10.3386/w34337. Acesso em 09 dez. 2025.

[4] INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: Indicadores trimestrais. 3º trimestre de 2025. Rio de Janeiro: IBGE, 2025. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9173-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-trimestral.html. Acesso em 09 dez. 2025.

[5] MINISTÉRIO DA FAZENDA (BRASIL). Portaria MF nº 490, de 21 de março de 2024. Diário Oficial da União, 22 mar. 2024, ed. 57, Seção 1, p. 38. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-mf-n-490-de-21-de-marco-de-2024-549577234. Acesso em: Acesso em 09 dez. 2025.

[6]  PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA (BRASIL). PARECER n.0004/2025/CONSUNIAO/CGU/AGU. Secretaria Especial para Assuntos Jurídicos da Casa Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AGU/Pareceres/2023-2026/PRC-JM-07-2025.htm. Acesso em 09 dez. 2025.

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