A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) declarou a Argentina responsável pelo desaparecimento e posterior execução de José Segundo Zambrano e de Pablo Marcelo Rodríguez, ocorridos no ano 2000, na província de Mendoza.
Os juízes também consideraram o país responsável pela falta de acesso dos familiares à Justiça, o que gerou violações aos direitos às garantias judiciais, à proteção judicial e à verdade em prejuízo deles.
José Segundo Zambrano era metalúrgico e atuava paralelamente como informante da Polícia da Província de Mendonça. Pablo Marcelo Rodríguez era entregador de uma farmácia e amigo de infância de José.
Em 25 de março de 2000, os dois foram vítimas de uma emboscada arquitetada por policiais de Mendoza, liderada por Felipe Gil, um agente com o qual José Zambrano tinha relação próxima.
Os amigos foram atraídos por um indivíduo identificado como Mario Díaz para uma localidade chamada Los Barrancos, na região de Mendoza, onde Felipe Gil os aguardava acompanhado por quatro homens.
Em depoimento posterior, Díaz contou que Gil se aproximou do carro de Zambrano e subitamente atirou na cabeça dele. Pablo Rodríguez tentou correr, mas foi baleado por outras duas pessoas no abdômen e na cabeça. A motivação dos crimes não foi esclarecida até hoje.
Os corpos dos amigos foram encontrados em 3 de julho de 2000, semienterrados no sopé de uma cadeia de montanhas no departamento de Godoy Cruz, município suburbano ao sul de Mendoza.
Familiares alegam que, ao tentarem informações sobre o paradeiro dos dois, ficaram desamparados pela Justiça e acabaram vítimas de uma campanha de desinformação por parte de autoridades.
Para a Corte IDH, as autoridades nacionais não agiram com a devida diligência para esclarecer os fatos, causando uma situação de impunidade em relação à investigação do ocorrido que perdura até os dias de hoje.
O tribunal declarou que a Argentina violou os direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal de Zambrano e Rodríguez.
No mesmo sentido, a Corte entendeu que os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial das vítimas e de seus familiares também foram violados, já que, mais de 25 anos depois do ocorrido, a verdade não foi estabelecida nem os autores efetivamente julgados e punidos.
O direito à verdade também foi violado, consideraram os juízes, em decorrência da omissão do Estado nos procedimentos destinados a investigar o ocorrido, identificar os responsáveis e fornecer respostas.
Em relação às famílias, os juízes ainda concluíram que houve violação do direito à integridade psicológica e moral das famílias. Em consequência disso, consideraram que as violações causaram “afetação grave” ao projeto de vida dos familiares, uma vez que as mortes provocaram mudanças drásticas no curso de suas vidas, nos seus planos e expectativas para o futuro.
O dano ao ‘projeto de vida’
A opinião majoritária da Corte IDH foi de incluir o dano ao projeto de vida como parte violação da integridade pessoal das famílias. Os juízes Rodrigo Mudrovitsch, do Brasil, e Ricardo Pérez Manrique, do Uruguai, discordaram dessa posição, afirmando que isso “dilui” o tema.
Eles emitiram um voto conjunto, em que reafirmam a posição de que o direito ao projeto de vida deve ser considerado de forma autônoma, diretamente protegido pela Convenção.
Os juízes brasileiro e o uruguaio já haviam manifestado o mesmo posicionamento nas sentenças dos casos Silva Reyes vs. Nicarágua (2025), Pérez Lucas e outros vs. Guatemala (2024) e Comunidades Quilombolas de Alcântara vs. Brasil (2024).
A violação do direito autônomo ao projeto de vida, tanto das vítimas primárias quanto de seus familiares, deveria ter sido explicitamente reconhecida, disseram eles.
“Como argumentado anteriormente, o reconhecimento da autonomia não é uma questão de preciosismo ou mera nomenclatura, pois implica consequências práticas que repercutem na tutela específica das ‘vocações, habilidades, circunstâncias, potencialidades e aspirações’ de cada indivíduo”, escreveram Mudrovitsch e Manrique.
“O bem jurídico tutelado não é a integridade psíquica e moral, mas a realização integral e pessoal, em sua dimensão de planejamento futuro e apego a esse planejamento”, afirmaram. “Esse direito abrange a incidência dos laços familiares sobre a realização integral e pessoal, no reconhecimento de que o planejamento de um indivíduo implica uma ampla gama de influências, entre as quais se destacam os laços familiares.”
Flávia Piovesan, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e ex-vice-presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), compartilha da visão de que o projeto de vida deve ser um direito autônomo.
“Eu convirjo com a ideia dos juízes Mudrovitsch e Manrique, principalmente levando em conta que a vida humana não se limita apenas à existência biológica, mas à possibilidade de a pessoa viver com dignidade, o que inclui a dimensão de futuro”, diz ela, espelhando a fala dos dois julgadores.
“A existência humana não pode ser limitada à continuidade biológica de seus sinais vitais, mas o postulado da dignidade (e o direito a ela) justifica a consideração da dimensão projetiva ou existencial como tendo seu próprio valor”, escreveram Manrique e Mudrovitsch em seu voto.
Piovesan ressalta que, embora a posição dos juízes ainda seja minoritária no tribunal, os votos divergentes têm importância fundamental na construção e manutenção de uma Corte IDH “viva”, em constante evolução.
“Embora a posição ainda seja minoritária, a interpretação evolutiva e dinâmica da Convenção se dá a partir desses posicionamentos. Foi assim com os Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais, por exemplo. O mais interessante é perceber como a Corte tem sido aberta a reconhecer novos direitos, sempre priorizando uma proteção reforçada às pessoas e grupos mais vulneráveis”, diz.
Paulo Lugon Arantes, doutor em Direito Internacional pela Universidade de Leuven, explica que o sistema europeu de direitos humanos entre bem menos no tema das reparações do que o sistema americano.
O tema do dano ao projeto de vida é muito condizente com a forma como o sistema americano costuma atuar e deve continuar a ser citado em outros julgamentos, diz o jurista.
“Para efeito de reparação material, o dano ao projeto de vida é o cálculo daquilo que se esperaria durante a vida da pessoa, de receitas, de salário”, explica Arantes.
Para ele, uma vez reconhecido o dano ao projeto de vida, existe pouca diferença em termos práticos de reparação material se ele é visto como um direito autônomo ou como parte da integridade e dignidade da pessoa.
“Mas considerá-lo autônomo tem um valor simbólico grande”, afirma.
Já o advogado Fauzi Hassan Choukr, pós-doutor em direitos humanos pela Universidade de Coimbra, afirma que considera que existem dois resultados práticos da autonomia.
“Isso significa que o direito pode ser buscado de uma forma independente de qualquer outro direito que o acompanha e que não se trata de uma mera recomposição material — essa autonomia vai exigir do Estado que ofendeu o direito políticas públicas para que a pessoa possa realizar esse projeto de vida”, afirma Choukr.
“Considerá-lo como autônomo significa valorizar as aspirações que uma pessoa têm em relação à sua existência”, diz o promotor.
Impacto para o Brasil
O reconhecimento do direito ao projeto de vida tem uma relevância grande para o Brasil, afirmam os pesquisadores.
Para Piovesan, esse movimento pode impulsionar a Justiça brasileira a conferir maior proteção a grupos historicamente vulnerabilizados, como populações indígenas e quilombolas.
“Os parâmetros protetivos interamericanos operam no sentido de compensar déficits nacionais e de empoderar atores, para que juízes capacitados sejam sensíveis a esses novos argumentos. Tenho certeza de que os parâmetros de vanguarda da Corte e sua jurisprudência emblemática serão replicados não só localmente, mas em outras jurisdições, como a Europa. É um processo, mas estamos em um caminho de esperança”, diz a professora.
Para o professor de Direito Flávio Bastos, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, a questão do direito ao projeto de vida se assemelha ao que no Brasil chamamos de dano existencial, que vai além do dano moral ou material.
“É quando uma pessoa sofre um dano que a obriga a ter toda uma mudança de vida”, diz ele, que é especializado em Direitos Fundamentais pela Universidade de Coimbra.
Paulo Arantes lembra que no Brasil o problema grave da brutalidade policial é combinado com o racismo e aponta que o voto dos juízes brasileiro e uruguaio articula essa questão, citando decisões passadas da corte.
“O parecer emitido no caso Dos Santos Nascimento e Ferreira Gomes x Brasil abordou como a submissão ao racismo sistêmico afeta e impede a livre construção de um projeto de vida, causando diminuição da autopercepção de dignidade e autoestima, e forçando a pessoa à exclusão e marginalização de si mesma”, diz o texto dos juízes Mudrovitsch e Manrique.
Arantes também destaca o fato do caso ser uma desaparição mesmo após o fim da ditadura.
“Os fatos se deram no ano 2000, então a gente não está falando de regime de exceção”, lembra. “Isso mostra a necessidade de uma vigilância constante”.