A semana trouxe um episódio que mereceria figurar na antologia das decisões administrativas que desafiam a lógica. O adicional de periculosidade concedido a conselheiros da Fazenda que atuam no Carf não decorre de visitas a ambientes de risco, nem de operações sensíveis, nem de diligências em campo. Surge, curiosamente, da atividade de julgar. Sentados. Em Brasília. Em sessões transmitidas ao vivo.
O dado que transforma o insólito em perplexidade é a assimetria criada no próprio plenário. Os conselheiros indicados pelos contribuintes, que compartilham a mesma mesa, o mesmo auditório, o mesmo horário e a mesma pauta, não farão jus ao adicional. O risco, segundo o laudo apresentado, não é fruto da função, mas da vinculação estatutária de quem a exerce. A periculosidade, nesse caso, não se irradia do ambiente, mas nasce da origem funcional e se dirige apenas a uma metade do colegiado. Cria-se um órgão em que o perigo não advém do ato, mas da biografia.
Do ponto de vista técnico, a tese tampouco resiste à análise. Alega-se que algumas autuações dialogam com organizações criminosas e podem ensejar desdobramentos penais. A partir daí, conclui-se que o conselheiro representante da Fazenda estaria exposto a um risco físico inerente às suas funções.
É uma elasticidade conceitual que desafia qualquer manual de direito administrativo. A periculosidade, tal como prevista na legislação trabalhista e na tradição jurídica, exige risco direto e concreto. Se levada ao extremo proposto, converteria boa parte do serviço público em atividade perigosa e despacharia a outra metade para um regime permanente de insalubridade.
Há um ponto ainda mais decisivo. O risco de que um processo administrativo tributário venha a ter repercussões penais não é novidade. A representação fiscal para fins penais, consolidada no art. 83 da Lei 9.430 de 1996, acompanha o auto de infração sempre que houver indício de crime tributário em tese.
A representação permanece sobrestada até a decisão final na esfera administrativa e, apenas após a confirmação do crédito tributário, é encaminhada ao Ministério Público, que pode oferecer denúncia ou promover arquivamento.
Esse mecanismo existe há quase três décadas, sem que jamais se tenha cogitado instituir adicionais remuneratórios em razão dessa possível consequência. A convivência entre controle tributário e persecução penal sempre integrou o funcionamento ordinário das instituições. A novidade não está no risco, mas na tentativa de convertê-lo em adicional pecuniário.
A comparação com profissionais expostos diariamente a perigos reais apenas acentua o descompasso. Médicos do SUS atendem em áreas dominadas por facções e não recebem qualquer proteção remuneratória proporcional ao risco.
Professores de escolas públicas convivem com ameaças constantes do narcotráfico e das milícias e nem por isso são lembrados. Fiscais que atuam em fronteiras vulneráveis enfrentam situações de risco concreto sem que isso lhes renda adicional de periculosidade. Se a atividade de julgar conflitos tributários é perigosa, o País deveria, por coerência, rever o estatuto de praticamente todo o funcionalismo.
Há, contudo, uma implicação mais profunda e raramente discutida. Quando um tribunal admite que teme as consequências de suas próprias decisões, ainda que de forma indireta e burocraticamente disfarçada, produz uma confissão involuntária de vulnerabilidade institucional.
A história recente fornece exemplos desconfortáveis. No México, alguns juízes passaram a atuar com o rosto coberto ao julgar crimes relacionados ao narcotráfico. A intenção era aumentar a segurança, mas o efeito simbólico foi devastador. Longe de fortalecer a Justiça, o mascaramento explicitou sua fragilidade e estimulou a percepção de que o Estado havia perdido o domínio territorial e moral da jurisdição penal. O medo, quando institucionalizado, não protege, mas exibe fraqueza.
Esse risco simbólico reaparece, ainda que de forma atenuada, no episódio do Carf. Ao atribuir periculosidade ao ato de julgar matéria tributária, o órgão sugere que suas decisões o expõem a perigos extraordinários. Cria-se, inadvertidamente, a imagem de um tribunal intimidado por forças externas, justamente o oposto do ideal de independência que deve sustentar qualquer instância decisória. Um colegiado não se engrandece pela remuneração acrescida, mas pela serenidade com que exerce sua autoridade.
Há, por fim, uma última impropriedade que precisa ser dita com clareza. O Carf não julga a materialidade de ilícitos penais. A apuração de fatos, provas, autoria, organização criminosa e dinâmica delitiva pertence à Polícia, ao Ministério Público e ao Judiciário. O Carf limita-se a examinar se determinado fato, já delineado nas instâncias competentes, produz efeitos tributários. Sua competência não se confunde com a investigação criminal, tampouco substitui o processo penal. Em três décadas de convivência entre as esferas tributária e penal, jamais se sustentou que o órgão estivesse submetido a riscos físicos por desempenhar sua função.
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Nem seria preciso tanto esforço argumentativo. O simples fato de que juízes criminais, que enfrentam diariamente a litigiosidade mais sensível da República, não recebem adicional de periculosidade já revela o descompasso intelectual da medida adotada. Se a linha de raciocínio fosse levada a sério, todo o edifício da jurisdição precisaria ser recalculado à luz da geografia do medo.
Ao final, o episódio não ameaça o Carf enquanto instituição, que segue essencial para o contencioso tributário brasileiro. Atinge, porém, sua imagem. Um colegiado que decide com base na razão não pode parecer governado pela ideia de perigo. Quando a lógica remuneratória suplanta a lógica institucional, quem perde não é o contribuinte nem a Fazenda. É o próprio espaço público, que deveria ser preservado de gestos que enfraquecem sua autoridade simbólica.