Voltar para onde?

Um artefato datado do século XVI, feito a partir das penas de guará e reservado apenas a grandes líderes. Para nativos, um símbolo do divino e do sagrado. Para pesquisadores, um de nossos bens culturais de maior valor identitário: o Manto Tupinambá.[1]

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Foram mais de 20 anos de negociações, precedidos por outros 300 de ausência. Em junho de 2024, o Museu Nacional – UFRJ[2] passou a ser oficialmente o novo custodiante do artefato que estava, até então, sob a posse do Museu Nacional da Dinamarca (Nationalmuseet).[3] Trata-se do único, entre onze Mantos Tupinambá originais sobreviventes, que volta para casa. Outros dez continuam espalhados por diferentes instituições europeias sem qualquer previsão de retorno.[4]

O retorno do manto parece marcar o ponto culminante de uma agenda ainda incipiente no Brasil: a repatriação de nosso patrimônio cultural.[5] Defender uma agenda de restituição não significa defender o retorno de todos os bens expatriados. Talvez seja necessário que alguns permaneçam no exterior para que suas histórias sejam contadas em outras partes do mundo. Afinal, em uma realidade multicultural e globalizada, é importante que pessoas de diferentes nacionalidades tenham acesso a múltiplas culturas e seus respectivos patrimônios.[6] No entanto, não se olvida que muitos de tais bens foram adquiridos em um contexto histórico de exploração e extermínio. Isso não parece ser uma política equilibrada de acesso à cultura e sim, mais uma vez, o sistema-mundo ditando as regras de conduta. Resquícios da colonização?

Mas a história do manto não acaba com a sua chegada ao Museu Nacional. Um ano depois de sua chegada, os Tupinambá de Olivença – descendentes diretos do povo que confeccionou o manto e responsáveis pelo início das negociações com a Dinamarca – realizaram uma vigília contra a permanência do artefato no Rio de Janeiro.[7] Para eles, a repatriação parece não estar concluída. Mais do que uma obra de arte, o manto seria parte da família e é com ela que ele deveria estar.  Mais precisamente, na Terra Indígena Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia, a qual acaba de ser demarcada pela Portaria nº 1075/2025, após mais de vinte anos de espera.[8]

Eis um dos grandes dilemas da agenda de repatriação do patrimônio cultural em países de dimensões continentais e heterogêneos como o Brasil: repatriar para onde?[9] Seja qual for a terminologia adotada, tanto repatriar quanto restituir remetem à ideia de retorno à origem. No caso do Manto Tupinambá, uma origem extinta há séculos: nem o Brasil era Brasil quando o manto foi levado à Europa, nem os Tupinambá permanecem como eram em 1500. Se, por um lado, a devolução do manto ao sul da Bahia poderia contribuir para restaurar seu significado autêntico, por outro, a permanência no Rio de Janeiro garantiria o acesso do público geral, reforçando seu papel como símbolo da identidade cultural brasileira.

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A questão que se coloca é: seria o manto mais brasileiro, enquanto expressão de nosso patrimônio cultural nacional, ou mais Tupinambá, enquanto herança cultural etnológica de seu povo? A quem ele deveria pertencer? Este debate evidencia a tensão entre propriedade individual (do museu) e propriedade coletiva (dos Tupinambá), e põe a prova os limites do patrimônio comum de uma nação e os direitos de seu criador. Cabe ao Direito lidar com os desafios do caráter multifacetado de bens culturais, em especial quando envolver comunidades que não compartilham a lógica de sistemas jurídicos ocidentais.

No Brasil, essa tensão encontra um marco normativo importante na Constituição Federal de 1988, que redefine o conceito de patrimônio cultural ao incorporá-lo como expressão da diversidade nacional (art. 216).[10] O dispositivo rompe com uma visão restritiva, centrada apenas na preservação material de bens monumentais, para reconhecer que a cultura se manifesta nas práticas, formas de expressão, conhecimentos e modos de fazer dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Em outras palavras, desloca o foco da proteção de objetos para a proteção de significados.[11]

Em paralelo, o art. 231, CF reconhece aos povos indígenas seus “direitos originários”, anteriores à própria formação do Estado brasileiro, incluindo seus sistemas de organização social, tradições e valores.[12] Embora trate mais diretamente da relação com a terra, sua leitura sistemática revela um reconhecimento mais amplo: os povos originários possuem regimes próprios de normatividade, que não podem ser reduzidos às categorias jurídicas ocidentais. Conceitos como “posse”, “propriedade” e “aquisição”, típicos desses sistemas, não correspondem necessariamente ao universo normativo indígena e são de difícil aplicação a direitos coletivos indivisíveis.[13]

O debate ganha uma camada adicional de complexidade em face do contexto histórico de formação dos acervos museológicos. Estima-se que incontáveis artefatos culturais expostos nos mais prestigiados museus do mundo não pertencem originalmente a eles e podem ter ali chegado por meio de práticas de exploração e pilhagem seculares.[14] Essa realidade não apenas priva de acesso aqueles que têm uma profunda conexão com os objetos, mas também simboliza e perpetua as práticas imperialistas de um passado sombrio, passado que insiste em fazer-se presente. No caso brasileiro, até o momento, nem mesmo um mapeamento conclusivo dos bens passíveis de restituição foi realizado.[15]

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Em 2024, o deputado Túlio Gadêlha (REDE/PE) propôs o Projeto de Lei nº 118/24, que institui a Política Nacional de Repatriação de Artefatos de Povos Originários e Tradicionais do Brasil.[16] A proposta visa “à restituição e devolução de artefatos culturais e históricos aos povos indígenas, quilombolas e demais comunidades tradicionais do Brasil”, com o intuito de “reconhecer e reparar as injustiças históricas sofridas pelos povos originários, que tiveram seus artefatos culturais retirados de forma indevida de seus territórios ao longo dos anos.” Segundo o PL, a resposta para a pergunta “restituir para onde?” é clara: o destinatário final são “os povos indígenas, quilombolas e demais comunidades tradicionais do Brasil.” Resta agora pensar em maneiras práticas de tornar isso possível.

O caso do Manto Tupinambá nos conduz ao epílogo da restituição — ao que acontece depois que as tratativas internacionais se encerram e a decisão de repatriar é tomada. Às vezes, a devolução ao território nacional não encerra a discussão; pelo contrário, evidencia a necessidade de decidir para quem, para onde e sob qual regime jurídico esse patrimônio deve ser reinserido. Em um país diverso e desigual como o Brasil, a disputa entre o Museu Nacional – UFRJ e os Tupinambá de Olivença abre espaço para debater questões mais profundas que a simples restituição: a repatriação dentro do território nacional.

[1] Raríssimo manto tupinambá que está na Dinamarca será devolvido ao Brasil; peça vai ficar no Museu Nacional. G1, 2023. Disponível em: <https://g1.globo.com/ciencia/noticia/2023/06/28/rarissimo-manto-tupinamba-que-esta-na-dinamarca-sera-devolvido-ao-brasil-peca-vai-ficar-no-museu-nacional.ghtml>. Acesso em: 03 nov. 2025.

[2] Museu Nacional – UFRJ website: <https://www.museunacional.ufrj.br>.

[3] Museu Nacional da Dinamarca (Nationalmuseet) website: <https://nationalmuseet.dk/en>.

[4] Confira a lista atualizada dos mantos remanescentes e seus respectivos paradeiros: Nationalmuseet, Copenhague (Dinamarca): 4 mantos; Museo di Storia Naturale dell’Università degli Studi di Firenze, Florença (Itália): 2 mantos; Museum der Kulturen Basel, Basileia (Suíça): 1 manto; Musées royaux d’Art et d’Histoire, Bruxelas (Bélgica): 1 manto; Musée du quai Branly – Jacques Chirac, Paris (França): 1 manto; Veneranda Biblioteca Ambrosiana, Milão (Itália): 1 manto.

[5] Nos últimos anos, dois outros casos ganharam notoriedade: no início de 2023, a Alemanha devolveu o fóssil do dinossauro Ubirajara jubatus, o qual havia sido retirado ilegalmente do Ceará em 1995. Cerca de um ano depois, 607 objetos indígenas brasileiros foram restituídos, após mais de 15 anos sob posse ilegal do Musée d’Histoire Naturelle de Lille, na França. Vide: Alemanha devolve ao Brasil fóssil de Ubirajara jubatus, dinossauro retirado ilegalmente do Ceará há trinta anos. G1, 2023. Disponível em: <https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2023/06/12/alemanha-devolve-ao-brasil-fossil-de-ubirajara-jubatus-dinossauro-retirado-ilegalmente-do-ceara-ha-trinta-anos.ghtml>. Acesso em: 04 nov. 2024. França devolve artefatos indígenas, mas transporte custa R$ 1 mi ao Brasil. Uol, 2024. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2024/07/11/franca-devolve-mais-de-600-reliquias-de-rituais-indigenas-mas-brasil-tem-que-desembolsar-r-1-milhao.htm?cmpid=copiaecola>. Acesso em: 04 nov. 2024.

[6] John Henry Merryman defende em seu artigo “Two Ways of Thinking about Cultural Property que “uma forma de pensar sobre o patrimônio cultural – ou seja, objetos de interesse artístico, arqueológico, etnológico ou histórico – é como componentes de uma cultura humana comum, independentemente de seus locais de origem ou localização atual, e alheios aos direitos de propriedade ou jurisdições nacionais”. (tradução livre). In: MERRYMAN, John Henry. Two Ways of Thinking about Cultural Property. The American Journal of International Law, vol. 80/no. 4, 1986, p. 831-853.

[7] Indígenas fazem vigília no Museu Nacional e exigem devolução do Manto Tupinambá à Bahia. G1, Bahia, 2025. Disponível em: <https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2025/07/03/indigenas-tupinamba-exigem-devolucao-do-manto-tupinamba-a-bahia.ghtml> Acesso em: 19 nov. 2025.

[8] Portaria do Ministro Nº 1075/2025: Declara de posse permanente do Povo Indígena Tupinambá a Terra Indígena Tupinambá de Olivença, localizada nos Municípios de Ilhéus, Buerarema e Una, no Estado da Bahia. Disponível em: <https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/arquivos-imprensa/saju/sei_33753830_portaria_do_ministro_1075.pdf>. Acesso em: 18 nov. 2025.

[9] Talvez devolver os Mármores do Partenon à Grécia seja, em muitos aspectos, uma operação mais simples do que restituir os Bronzes do Benim. Afinal, enquanto Atenas continua sendo Atenas, o Reino do Benim — assim como muitas outras civilizações africanas, americanas e asiáticas — deixou de existir em razão do imperialismo europeu. Hoje, qualquer eventual restituição seria feita à atual República Federal da Nigéria. Para uma discussão mais aprofundada sobre esses casos, vide: HERMAN, Alexander. The Parthenon Marbles Dispute. London: Institute of Art & Law, 2023. HICKS, Dan. The Brutish Museums: The Benin Bronzes, Colonial Violence and Cultural Restitution. United Kingdom: Pluto Press, 2020.

[10] CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE 1988

Art. 216 – Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, (…).

[11] SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens culturais e sua proteção jurídica. 3ª ed., Curitiba: Juruá, 2006, p. 22.

[12] CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE 1988

Art. 231 – São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

[13] FARIA, José Angelo Estrella. La protection des biens culturels d’intérêt religieux en droit international public et en droit international privé: Collected Courses of The Hague Academy of International Law. Leiden: Brill- Nijhoff, 2021. (Recueil des cours, v. 421). p. 277 ss.

[14] O que aconteceria se os museus europeus tivessem que devolver a arte colonial espoliada? El País, 2019. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/03/14/cultura/1552575802_167574.html>. Acesso em: 04 nov. 2024.

[15] Uma primeira iniciativa é a chamada Lista Vermelha de Objetos Culturais Brasileiros em Risco, catalogada pelo ICOM. Vide: Red List of Brazilian Cultural Objects at Risk. Lista Vermelha ICOM. Disponível em: <https://icom.museum/wp-content/uploads/2023/02/Red-List-Brazil_Page_Final_EN.pdf>. Acesso em: 24 out. 2025.

[16] Projeto de Lei nº 118/2024, por Túlio Gadêlha – REDE/PE, Institui a Política Nacional de Repatriação de Artefatos dos Povos Originários e Tradicionais. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2384658&filename=PL%20118/2024>. Acesso em: 19 nov. 2025.

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