Novos desafios para o Direito das Sucessões na era dos dados

O tema da herança digital tem ganhado destaque em diferentes países, à medida que a vida cotidiana se transfere cada vez mais para o ambiente virtual. Ativos digitais compõem hoje uma parcela significativa do patrimônio das pessoas. E o que são ativos digitais? Quando pensamos em bens digitais, instintivamente nos remetemos à ideia de ativos financeiros, como criptomoedas, contas em bancos digitais ou NFTs. No entanto, ativos digitais abrangem mais do que isso, pois também incluem itens de valor afetivo, como fotografias e vídeos, e itens que misturam o valor financeiro com o sentimental, como contas em redes sociais voltadas para negócios ou conteúdos monetizáveis, como vídeos e programas de fidelidade.

Dessa forma, podemos considerar que qualquer bem armazenado em um formato digital que gere valor ao seu proprietário – seja ele emocional, financeiro ou funcional (como contas de e-mail) – pode teoricamente ser considerado um ativo digital.[1]

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Diferentemente dos ativos físicos, que são regulados por legislações consolidadas e longamente interpretadas pela jurisprudência, a propriedade digital ainda traz inúmeros desafios porque não se encaixa facilmente nas categorias tradicionais do direito civil, levantando novas questões: pode ser transmitida aos herdeiros? Quem tem direito de acessá-la? Como conciliar o valor afetivo e econômico desses ativos com a proteção da privacidade do falecido?

Para tentar responder a essas perguntas, vamos analisar brevemente como o tema vem sendo tratado no campo internacional e, depois, como essa discussão se reflete no Brasil.

O panorama internacional

Diversas jurisdições vêm construindo respostas para essas questões. Nos Estados Unidos, o tema é regulado pela Revised Uniform Fiduciary Access to Digital Assets Act (RUFADAA), adotada pela maioria dos estados norte-americanos. A RUFADAA permite que o usuário defina quem poderá acessar suas contas digitais por meio de documentos de planejamento patrimonial ou testamento, estabelecendo uma ordem de prioridades para o acesso dos fiduciários.

Na União Europeia, o tratamento da herança digital é mais fragmentado, mas segue a tendência de respeitar a autodeterminação do titular dos dados. A França foi pioneira ao adotar, em 2016, a “Lei para uma República Digital”, permitindo que as pessoas definam o destino de seus dados após a morte, com registro nas plataformas ou perante a CNIL (Comissão Nacional de Informática e Liberdades). A Alemanha, em 2018, decidiu que contas em redes sociais podem ser herdadas, reconhecendo o valor afetivo das mensagens e publicações. Já a Espanha, por meio da Lei Orgânica 3/2018, autoriza familiares a acessarem, modificarem ou excluírem dados pessoais de falecidos, respeitando as intenções do titular.

As experiências das plataformas digitais

Além das legislações nacionais, grandes empresas de tecnologia passaram a oferecer ferramentas de planejamento sucessório digital. O Google criou o Inactive Account Manager, permitindo que o usuário escolha contatos de confiança e decida o destino de seus dados após um período de inatividade; o Facebook possui o Facebook’s Legacy Contact, que permite que uma pessoa autorizada acesse os dados do titular após a morte; a Apple oferece o Digital Legacy, que permite que o titular indique pessoas para acessar seus arquivos, mediante chave de acesso e certidão de óbito. Essas medidas conferem maior previsibilidade ao destino dos dados e reduzem a dependência de decisões judiciais.

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Esses exemplos mostram que, embora cada país adote soluções próprias, há um consenso internacional em torno de três princípios básicos: (i) o reconhecimento de que os dados e conteúdos digitais possuem valor patrimonial e afetivo e, portanto, integram o acervo sucessório; (ii) a primazia da vontade do titular, que deve poder decidir o destino de suas informações após a morte; e (iii) a necessidade de equilibrar o direito à herança com a proteção da privacidade e da dignidade da pessoa falecida.

Herança digital no Brasil

No Brasil, o tema ainda carece de regulamentação específica. O Código Civil não trata de bens digitais, e a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n.º 13.709/2018) não regula, de forma expressa, o tratamento de dados pessoais de pessoas falecidas. Diante desse vazio normativo, o Poder Judiciário tem desempenhado papel central na definição de parâmetros e princípios aplicáveis.

Um caso paradigmático, julgado recentemente, em setembro de 2025, pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ilustra bem esse processo de construção jurisprudencial.

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O caso teve origem em um trágico acidente aéreo ocorrido em 2016, em São Paulo, que vitimou seis membros de uma mesma família. Durante o inventário, os herdeiros solicitaram acesso a três tablets pertencentes às vítimas, com o objetivo de verificar se havia bens ou ativos digitais que integrassem o espólio, como documentos, contratos, registros financeiros, obras intelectuais ou correspondências eletrônicas. Diante da recusa das empresas de tecnologia em liberar o conteúdo sem ordem judicial, o pedido chegou ao STJ por meio do Recurso Especial n.º 2.124.424/SP.[2]

A relatora, ministra Nancy Andrighi, reconheceu que a legislação brasileira não oferece mecanismos claros para lidar com bens digitais, mas ressaltou a necessidade de equilibrar o direito sucessório com a tutela da personalidade e da intimidade. Para isso, propôs a criação, no âmbito processual, de uma figura auxiliar do juiz: o inventariante digital. Esse profissional técnico e imparcial seria responsável por acessar os dispositivos eletrônicos de forma controlada, identificando apenas os bens digitais de valor econômico ou afetivo que pudessem integrar o espólio, garantindo que a privacidade dos falecidos fosse preservada. Essa construção dialoga diretamente com os artigos 1º, III, e 5º, X e XII, da Constituição Federal, ao buscar compatibilizar a dignidade da pessoa humana com a intimidade, a vida privada e o sigilo das comunicações no contexto sucessório.

Desafios e perspectivas futuras

O debate sobre a herança digital evidencia a complexidade de equilibrar valores igualmente relevantes: o direito sucessório, que garante a transmissão do patrimônio, e os direitos da personalidade e da privacidade, que protegem a esfera íntima do indivíduo, inclusive após a morte. No plano jurídico, o desafio é construir pontes entre esses campos, reconhecendo que os dados pessoais são, ao mesmo tempo, um bem de conteúdo patrimonial e uma extensão da identidade humana.[3]

As decisões judiciais e futuras leis, como demonstrado pelo precedente do STJ, podem servir como instrumentos de equilíbrio, ao criar procedimentos que permitam o acesso aos bens digitais sem violar a intimidade dos falecidos. A figura do inventariante digital é um exemplo de mecanismo que atende a essa dupla função: garantir a efetividade do inventário e preservar os direitos da personalidade. No entanto, a consolidação de uma política pública de proteção e transmissão de bens digitais dependerá de normas específicas que definam limites, responsabilidades e garantias, evitando interpretações dispersas e desiguais.

Ao lado da legislação e da jurisprudência, o planejamento sucessório digital desempenha um papel essencial. É recomendável que cada pessoa defina antecipadamente o destino de suas contas e arquivos virtuais, seja por meio de testamentos tradicionais que mencionem bens digitais, seja pelo uso das ferramentas de legado oferecidas por plataformas como Google e Apple. Essa autonomia, contudo, não é absoluta: ela encontra limites relevantes nos Termos de Uso das plataformas digitais, que em muitos casos tratam as contas como relações contratuais personalíssimas e restringem sua transmissão a terceiros, mesmo por sucessão. Essa tensão entre o direito sucessório e o regime contratual das plataformas reforça a necessidade de soluções jurídicas e técnicas integradas.[4] Essas medidas permitem que a vontade do titular seja respeitada na maior medida possível, reduzem litígios familiares e evitam o desaparecimento de conteúdos de valor afetivo ou econômico.

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Para os operadores do direito, o tema exige uma postura interdisciplinar. É preciso compreender tanto os aspectos técnicos do armazenamento de dados quanto os princípios constitucionais que orientam a proteção da personalidade.

A herança digital, portanto, não é apenas uma questão patrimonial. Ela representa a tentativa de o direito acompanhar a evolução da vida social e tecnológica, garantindo que os vínculos, memórias e identidades preservados em meio digital recebam tutela equivalente àquela conferida aos bens materiais. As leis e decisões judiciais podem mitigar conflitos e oferecer parâmetros, mas a solução plena também passa pela conscientização individual e pelo planejamento em vida. Nesse contexto, a herança digital deixa de ser uma questão periférica para se afirmar como um eixo relevante do Direito das Sucessões contemporâneo, exigindo respostas normativas, técnicas e culturais compatíveis com a sociedade dos dados.

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[1] GOLDSTON, Justin et al. “Digital Inheritance in Web3: A Case Study of Soulbound Tokens and the Social Recovery Pallet within the Polkadot and Kusama Ecosystems”, 2024, em https://philarchive.org/archive/GOLDII-4.

[2] REsp nº 2124424-SP (2023/0255109-2), Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, em https://bit.ly/48dOJpe.

[3] REEVES, Andrew et al, ”Data After Death: Australian User Preferences and Future Solutions to Protect Posthumous User Data”, 2024, at  https://bit.ly/3Y6278U.

[4] HAUGHTON, David. “Estate Planning in the Digital Age: Why Digital Assets Are a Critical Part and How to Help Clients Address Them”, 2025, em https://bit.ly/48POxN1.

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