A porta giratória da prisão: por que punir mais não significa mais segurança

Se o encarceramento resolvesse a violência, o Brasil seria um dos países mais seguros do mundo. Afinal, em julho de 2025, o país tem a terceira maior população prisional do planeta, com mais de 909 mil pessoas presas, segundo o 19º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, e, ainda assim, convive com altos índices de criminalidade e uma sensação generalizada de insegurança.

A promessa de que punições mais severas geram mais segurança pública não se sustenta. O que se observa, na prática, é uma lógica de porta giratória: pessoas entram no sistema prisional, cumprem pena, são libertadas, e logo retornam ao cárcere. Um ciclo que consome recursos públicos, aprofunda desigualdades e fracassa em seu objetivo central: proteger a sociedade.

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A crise do encarceramento e os mitos da punição

O crescimento da população carcerária, cerca de 6,7% em relação ao ano anterior, vem acompanhado de um cenário alarmante: superlotação, déficit de vagas, falta de acesso a direitos básicos. Além disso, a maioria das pessoas presas cumpre pena por crimes não violentos. O sistema penal brasileiro pune mais, mas não pune melhor.

Em momentos de comoção pública ou da sensação de impunidade, a resposta mais comum é endurecer penas, dificultar a progressão de regime e limitar saídas temporárias. Esse tipo de resposta ignora as causas profundas da criminalidade e, sobretudo, desconsidera que a prisão, tal como funciona hoje, falha sistematicamente em reintegrar.

A reincidência é um dos principais indicadores desse fracasso. Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Instituto de Pesquisa Aplicada (Ipea), no relatório “Reentradas e reiterações infracionais: um olhar sobre os sistemas socioeducativo e prisional brasileiro”, mostram que 37,6% das pessoas voltam a cumprir pena em até cinco anos após a soltura. Quando se considera qualquer tipo de reentrada no sistema (inclusive prisões provisórias), o índice chega a 42,5%. Ou seja, quase metade das pessoas que saem da prisão voltam. Prova de que a liberdade, por si só, não basta.

Quando a prisão aprofunda vulnerabilidades

A maioria das pessoas privadas de liberdade no Brasil já vivia em situação de exclusão antes de ser presa, são, em geral, jovens, negros e pobres. A passagem pela prisão, em vez de interromper esse ciclo de desigualdade, o aprofunda ainda mais.

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Cumprir pena significa, quase sempre, perder vínculos familiares, emprego, moradia e até documentos pessoais. Ao sair, a pessoa enfrenta um estigma que fecha portas no mercado de trabalho, na educação e na convivência comunitária. O resultado é previsível: a reincidência se torna o único caminho visível para muitos.

Sem políticas de apoio à saída da prisão, o sistema penal se transforma em uma engrenagem silenciosa que recicla vulnerabilidades. E isso não é um problema apenas para quem cumpre pena. É um problema para toda a sociedade: a exclusão alimenta precisamente a violência que se pretende combater.

A mudança começa pela porta de saída

Por muito tempo, o Estado brasileiro negligenciou o pós-prisão. A atenção à pessoa egressa era empurrada para igrejas, ONGs e ações isoladas. Faltava política pública, orçamento e coordenação interinstitucional.

Esse cenário começou a mudar em 2020, com a Resolução nº 317 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que estabeleceu diretrizes para a criação dos Escritórios Sociais, espaços públicos de acolhimento e encaminhamento de serviços para pessoas egressas e seus familiares.

Em 2023, o Governo Federal deu passos importantes nessa direção. A Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN) criou a Coordenação Nacional de Atenção à Pessoa Egressa do Sistema Prisional (COATE), vinculada à Diretoria de Cidadania e Alternativas Penais (DICAP), e, no fim do mesmo ano, instituiu a Política Nacional de Atenção à Pessoa Egressa (PNAPE), por meio do Decreto nº 11.843/2023. A PNAPE reconhece a pessoa egressa como sujeito de direitos e estabelece a reintegração como responsabilidade compartilhada entre Estado e sociedade.

Essa política representa uma inflexão essencial: se o Estado tem poder para punir, também deve ter o compromisso de reintegrar.

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Política pública como resposta estruturante

Investir na reintegração social de pessoas egressas é uma estratégia inteligente, justa e sustentada por evidências. Países que investem em programas estruturados de acolhimento, qualificação profissional, apoio psicológico, assistência social e acesso à moradia apresentam taxas de reincidência significativamente menores.

O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) reforça que a prevenção da reincidência e a reintegração social são pilares de uma política penal eficaz. Políticas públicas voltadas ao pós-pena não são apenas humanitárias, são mais eficientes para reduzir o crime do que a simples multiplicação de prisões.

A experiência dos Escritórios Sociais e Serviços Especializados, já implantados e em funcionamento, demonstra que é possível articular a oferta de serviços públicos e construir caminhos reais de retorno à sociedade. Para consolidar essa política, entretanto, são necessários escala, continuidade e financiamento.

Superar o punitivismo exige coragem

Um dos maiores entraves à consolidação de políticas de reintegração é o imaginário punitivista ainda dominante, que cria um terreno fértil para políticas e ações ineficazes, caras e desumanas.

Romper com essa lógica exige coragem política, compromisso com os dados e escuta da sociedade. É preciso reafirmar que ninguém deve ser definido exclusivamente pelo pior ato que cometeu. Justiça verdadeira não apenas pune – oferece uma segunda chance.

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Liberdade sem apoio é só mais uma sentença

Se queremos reduzir a criminalidade e conter o encarceramento em massa, precisamos investir menos em grades e mais em pontes. A saída da prisão não deve ser encarada como o fim de um ciclo, mas o início de outro, isto é, como uma nova chance.

A insistência em punir mais como resposta automática à insegurança é um caminho ineficaz e desumano. O que o Brasil precisa é de um sistema de justiça que funcione, e isso somente é viável quando a liberdade vem acompanhada de apoio. Sem esse apoio, a liberdade corre o risco de ser apenas mais uma forma de exclusão.

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