A expressão “cidade inteligente” tornou-se onipresente nos discursos sobre desenvolvimento urbano. Porém, é incomum questionar: inteligente para quem? A quem serve essa inteligência? Essas perguntas expõem uma lacuna crítica no debate contemporâneo sobre inovação urbana: a frequente desconexão entre soluções tecnológicas e impactos reais na qualidade de vida dos cidadãos.
Pensar cidades inteligentes exige deslocar o foco das ferramentas para as finalidades, da tecnologia para as pessoas, dos sistemas para os cidadãos que vivenciam cotidianamente o espaço urbano. Mais do que implementar inovações, trata-se de construir cidades que efetivamente produzam bem-estar por meio do uso racional do território. Para isso, é imprescindível considerar que: (a) é preciso reposicionar o espaço urbano como centro de políticas públicas e extrair dele os dados necessários para monitoramento e avaliação de políticas públicas; (b) a regulação econômica traz ferramentas para não só melhorar serviços públicos, mas para aperfeiçoar os programas de políticas públicas orientados por evidências científicas; (c) a tecnologia pode ser um meio para coleta e tratamento mais eficiente de dados, mas não uma ferramenta de exclusão social e substituição da inteligência humana. “Smart cities” são aquelas que melhor atendem às necessidades de seus cidadãos e que usa a tecnologia para criar impactos reais na vida das pessoas.
A primeira premissa que é preciso tratar para o fortalecimento do conceito de cidade inteligente está na transcendência de definições estáticas baseadas em inventários tecnológicos. Não se trata apenas de sensores IoT, big data, inteligência artificial ou plataformas digitais, embora esses elementos possam integrar o ecossistema urbano inteligente. O conceito abarca qualquer inovação disruptiva capaz de transformar como cidades funcionam, independentemente de seu grau de sofisticação digital.
Uma horta comunitária que otimiza uso de espaços ociosos e reduz insegurança alimentar é manifestação de inteligência urbana tanto quanto um sistema algorítmico de gestão de tráfego. O planejamento de áreas verdes e outras soluções baseadas na natureza como instrumentos de drenagem e reaproveitamento de águas pluviais são medidas há muito conhecidas como eficazes para proteger as cidades contra eventos climáticos extremos e contribuir para a disponibilidade de água em momentos de escassez, além de trazer conforto climático e melhorias estéticas3. Sistemas de saúde integrados por agentes comunitários (humanos) capazes de identificar, com rapidez, focos de doenças, agravos à saúde4, casos de violência doméstica ou infantil. Cooperativas de reciclagem que reorganizam logística de resíduos sólidos representam inovação disruptiva com impacto urbano concreto. Programas de uso compartilhado de equipamentos públicos reconfiguram padrões de consumo e ocupação espacial. Todas essas iniciativas merecem ser lidas sob a ótica das cidades inteligentes porque transformam relações entre pessoas, recursos e território.
Essa amplitude conceitual não representa indefinição técnica, mas reconhece que a inteligência urbana reside na capacidade de gerar soluções eficientes para problemas coletivos, não na adoção de tecnologias específicas. Cidades verdadeiramente inteligentes são aquelas que conseguem identificar de forma adequada os seus problemas, garantindo a efetiva participação do cidadão, e mobilizar criatividade, conhecimento e recursos – digitais ou não – para melhorar substantivamente a vida de quem nelas habita. Uma cidade inteligente é aquela em que o Poder Público funciona como motor da inovação: incentivador, curador e, em muitos casos, financiador, aplicando-a a problemas reais, observados junto à sociedade, em todas as regiões do município.
A segunda premissa que se torna urgente trabalhar é que políticas públicas e serviços públicos não existem abstratamente: materializam-se em territórios concretos e alcançam pessoas reais. Pode parecer simplória tal afirmativa, mas no Brasil, onde há uma centralização fortíssima das competências constitucionais centradas na União e nos Estados, restam poucos elementos que parecem fortalecer os municípios como elemento jurídico estratégico nas construções de políticas públicas. Mas é preciso quebrantar esse cenário. O espaço urbano é simultaneamente meio e fim das ações governamentais. É no território que cidadãos acessam saúde, educação, cultura, mobilidade, segurança. É na cidade que se experiencia – ou não – a efetividade dos direitos fundamentais. A construção de cidades inteligentes, nesse cenário, é um verdadeiro teste ao Federalismo cooperativo, exigindo uma visão integrada do problema e a cooperação entre as diversas esferas federativas competentes. O Centro de Operações Rio é um exemplo disso5.
Essa constatação – aparentemente óbvia – é frequentemente negligenciada em projetos de cidades inteligentes que priorizam eficiência sistêmica sobre experiência individual. Otimizar fluxos de tráfego pode ser objetivo válido, mas se o sistema privilegia corredores de alta velocidade em detrimento da segurança de pedestres, a inteligência serve apenas a uma parcela da população. Digitalizar serviços públicos aumenta conveniência para quem possui acesso digital, mas pode aprofundar exclusão se não houver alternativas para populações vulneráveis.
A eficiência verdadeiramente relevante não é aquela medida em indicadores abstratos de performance sistêmica, mas aquela percebida por indivíduos concretos em suas trajetórias diárias pela cidade. Quanto tempo uma mãe gasta deslocando-se entre casa, trabalho e creche? Um idoso consegue acessar serviços de saúde de forma digna? Jovens encontram espaços públicos seguros para convivência? Trabalhadores informais podem exercer atividades econômicas sem criminalização?
Essas questões deveriam orientar toda política de cidade inteligente. A tecnologia – ou qualquer outra inovação – é meio, não fim. O fim é sempre o bem-estar humano experimentado individualmente no cotidiano urbano.
A terceira premissa de trabalho é compreender que a regulação econômica traz ferramentas para não só melhorar serviços públicos, mas para aperfeiçoar os programas de políticas públicas orientados por evidências científicas.
Reconhecer que inovações urbanas produzem impactos distributivos diferenciados exige que a regulação econômica assuma papel ativo na orientação desses processos. Mercados de inovação, deixados à própria dinâmica, podem reproduzir e aprofundar desigualdades existentes. Soluções desenvolvem-se prioritariamente para públicos com maior poder aquisitivo, territórios já privilegiados concentram investimentos, externalidades negativas recaem desproporcionalmente sobre populações vulneráveis.
A regulação não deve frear inovação, mas direcioná-la para que seus benefícios sejam amplamente distribuídos. Esse é o papel de curadoria a que nos referimos acima. Isso pode ocorrer mediante requisitos de acessibilidade universal, obrigações de atendimento em territórios periféricos, mecanismos de compartilhamento de dados para planejamento público ou tributos sobre externalidades negativas. O Sandbox.Rio6, por exemplo, permite experimentação regulatória de inovações desde que haja clareza sobre impactos sociais e territoriais esperados.
Experiências internacionais demonstram que regulação bem desenhada potencializa inovação socialmente orientada. Barcelona condicionou projetos de smartificação urbana a processos participativos que garantem que soluções tecnológicas respondam a demandas reais de bairros7. Viena desenvolveu padrões de qualidade para habitação compartilhada que protegem tanto locadores quanto comunidades locais8. Essas cidades compreenderam que inteligência urbana exige governança ativa, não neutralidade regulatória.
Se o objetivo é bem-estar individual, indicadores de sucesso de políticas de cidade inteligente precisam refletir essa prioridade. Métricas tradicionais de smartificação urbana – número de sensores instalados, volume de dados coletados, aplicativos disponibilizados – dizem pouco sobre impactos na vida concreta das pessoas. Indicadores relevantes deveriam capturar: tempo médio de deslocamento casa-trabalho desagregado por bairro e renda, acesso a equipamentos públicos em diferentes territórios, percepção de segurança em espaços públicos, acesso a espaços públicos de lazer, facilidade de acesso a serviços públicos, satisfação com qualidade ambiental urbana. Também deveriam monitorar impactos distributivos: inovações estão reduzindo ou ampliando desigualdades? Chegam a todas as regiões ou concentram-se em áreas já privilegiadas?
Essa mudança de foco dos indicadores não é meramente técnica, mas política. Reflete escolha sobre o que vale a pena medir porque vale a pena alcançar. Cidades que decidem avaliar sucesso pela experiência dos cidadãos, não pela sofisticação de sistemas, orientam esforços e recursos para o que efetivamente importa.
Cidades verdadeiramente inteligentes são aquelas que conseguem mobilizar inovações – tecnológicas ou não – para produzir bem-estar amplamente distribuído mediante uso racional e equitativo do território. Não há inteligência em sistemas sofisticados que servem poucos ou em eficiências abstratas que não se convertem em melhorias percebidas por quem habita a cidade.
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O desafio regulatório e urbanístico contemporâneo é reorientar o debate sobre inovação urbana colocando as pessoas no centro. Isso exige regulação econômica que direcione inovações para finalidades sociais, políticas urbanísticas que integrem transformações tecnológicas ao planejamento territorial, participação cidadã que submeta escolhas técnicas ao controle democrático, e indicadores que meçam o que verdadeiramente importa: a qualidade de vida experimentada individualmente no cotidiano das cidades.
A construção de cidades inteligentes para as pessoas não ocorrerá espontaneamente. Exige projeto deliberado, expresso em marcos regulatórios, instrumentos urbanísticos e políticas públicas que subordinem meios a fins, tecnologia a humanidade, eficiência sistêmica a bem-estar individual. Este é o compromisso ético que deve orientar toda transformação urbana contemporânea.
3 Alguns exemplos:
https://www.prosustentavel.niteroi.rj.gov.br/parque-orla-piratininga/
https://climate-adapt.eea.europa.eu/en/metadata/case-studies/new-north-zealand-hospital-a- resilient-acute-care-hospital-for-the-future-hillerod-denmark?
4 https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC9588157
5 https://cor.rio/
6 Acesse em www.sandboxrio.com.br
7 Sobre a experiência de Barcelona: https://ajuntament.barcelona.cat/digital/en/digital-innovation
8 Detalhes sobre políticas habitacionais de Viena: https://www.wienerwohnen.at/en/