Sem retórica, sem poder: por que o Judiciário precisa aprender a dialogar?

Os novos autocratas entendem plenamente a importância de controlar a opinião pública no interior de seus próprios países. Sabem utilizar e manipular emoções fortes, conectando plateias a partir das questões que mais as afligem (Applebaum, 2024), apontando culpados e escolhendo heróis, defendendo, pelo menos em seu discurso, que todo poder emana do povo, mas que só eles podem compreender os verdadeiros anseios sociais.

Para Tom Ginsburg e Aziz Huq (2018), líderes cujo objetivo é retroceder instituições democráticas tendem a se retratar como a única voz autêntica do povo, enquadrando os demais organismos do poder como representantes de uma elite desgastada e isolada, envolvida em práticas de autoproteção. Assim, tentam desmantelar a pluralidade das instituições nacionais, sob o argumento de estarem agindo nos limites autorizados pela sua constituição democrática.

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A experiência comparativa tem sugerido que um judiciário independente pode configurar uma barreira significativa contra o retrocesso democrático. Por isso, é comum ver aspirantes a autocratas tentando enfraquecer tribunais e juízes, desafiando seus poderes, e utilizando de fórmulas estereotipadas e fixas, anti-instituições e antigoverno (Menezes, 2024), independentemente de seu espectro político, para argumentarem a prevalência do interesse do executivo “democraticamente eleito”.

São exemplos os casos de El Salvador, sob a presidência de Nayib Bukele, país que, segundo o instituto V-Dem1, após anos de um processo de redemocratização, voltou a ser considerado uma autocracia eleitoral em 2021; e do México, a partir do governo de Andrés Manuel López Obrador, nação classificada e mantida como “zona cinzenta democrática” pelo instituto há dois anos.

Mesmo que tenham vieses políticos opostos, os dois líderes construíram um roteiro semelhante nos variados graus de autocratização de seus países: aproveitando um contexto de insatisfação com a política denominada “tradicional”, utilizaram-se de redes sociais para deflagrarem discursos “antissistema”, vinculando-se a um novo partido, defendendo serem os verdadeiros e únicos conhecedores dos interesses e problemas dos cidadãos, e atacando os demais componentes da estrutura estatal. Ao se elegerem, realizam medidas de reestruturação do estado “por dentro” das vias do sistema, perpetuando seu partido no poder em nome de uma suposta maioria.

Com efeito, no menor país da América Central, o partido Nuevas Ideias, de Nayib Bukele, eleito presidente em 2019, garantiu 56 das 84 cadeiras da legislatura. Na noite em que o novo congresso tomou posse, em 1º de maio de 2021, foram destituídos cinco juízes da sua Corte Suprema de Justiça, além do procurador-geral do país2.

No mesmo ano, parlamentares alinhados ao governo aprovaram as reformas à “Ley de la Carrera Judicial” e à “Ley Orgânica de la Fiscalía General de la República”3, que acabou por destituir, imediatamente, pelo menos 156 promotores e juízes com mais de 60 anos de idade ou que tivessem mais de 30 de serviço (Struck, 2022). Em setembro de 2021, a nova composição da Corte Suprema autorizou que o presidente pudesse concorrer a um mandato consecutivo em 2024, mesmo diante da norma constitucional que dispõe ser de cinco anos o mandato presidencial, “sem que a pessoa que exerceu a Presidência possa continuar em suas funções por mais um dia”4.

No México, por sua vez, Andrés Manuel López Obrador (AMLO), fundou, em 2014, o partido Movimento Regeneração Nacional (Morena) e em 2018, ganhou as eleições presidenciais mexicanas, amparado em um forte apoio popular. Antes de ser eleito, durante um evento de campanha, o agora ex- presidente provocou seus ouvintes perguntando se eles saberiam dizer alguma coisa que os membros da Suprema Corte do México teriam feito em benefício do país e de seus cidadãos.

Menos de dez meses depois, enviou múltiplos projetos ao legislativo para reformar o Poder Judiciário (Alterio, 2024), e em ato final antes da posse da nova presidente – também do Morena, Claudia Sheimbaum, em 1º de outubro de 2024 –, assinou uma emenda de reforma do judiciário, aprovada por ambas as câmaras do Congresso em apenas alguns dias (Velasco-Rivera; Olaiz; Parra Prieto, 2024) e pelas legislaturas estaduais em menos de 24 horas, na qual foi introduzida eleição popular de todos os magistrados no judiciário federal5.

A Suprema Corte, cuja composição já contava com cinco indicados pelo ex-presidente, foi reduzida de 11 para 9 juízes, e passou à supervisão de um Tribunal de Disciplina Judicial, cujas decisões são definitivas e incontestáveis, e seus membros também eleitos por voto popular.

Na contramão desses movimentos, insere-se a importância da apreensão de uma retórica de fortalecimento do Poder Judiciário, construindo um ethos que retome em algum um nível seu apoio popular e sua conexão com os demais atores do sistema judicial. As teorias retóricas compreendem que aquilo que acreditamos ser a verdade são metáforas por meio das quais constituímos nossas relações pessoais, e que a linguagem não é apenas um intermediário entre o sujeito e seu entorno, mas o próprio mundo perceptível.

O ponto de partida da aplicação da retórica consiste em pensá-lo como artefato humano inserido na história, um lugar de disputas e conflitos pelo poder de significar o tempo, de produzir realidades, cujo intuito estratégico é o de influir no que compreendemos como presente e futuro (Reis, 2018).

Portanto, se a retórica é a compreensão do próprio mundo real, uma vez que toda percepção humana ocorre pela linguagem, o Poder Judiciário também é aquilo que ele mesmo constrói sobre si e como a sociedade o percebe. Como defende Ruth Amossy (2016), todo o ato de tomar a palavra, deliberadamente ou não, implica a construção de uma imagem. Nesse raciocínio, os tribunais não apenas decidem casos concretos, mas participam ativamente da construção da própria realidade social através de suas narrativas e interpretações, as quais refletirão no imagético acerca dessa figura.

No entanto, sob a máscara autoritária da erudição do saber jurídico, por vezes se desvelam decisões desvinculadas das demandas da sociedade complexa, aumentando o nível de desconfiança a cada participação de magistrados em eventos promovidos por empresas que possuem interesses econômicos muito específicos, em viagens pagas por autores e réus de processos em trâmite, e na possibilidade de não se declarar suspeito ou impedido no julgamento de demandas defendidas por seus familiares e sócios. E então, quando o discurso da autoridade já não atende aos maiores anseios ou desejos sociais, bem como ignora o papel dos demais órgãos essenciais à justiça, sua onipotência começa a ruir.

Conforme leciona Conrado Hübner Mendes (2023), um dos maiores desafios do desenho institucional do judiciário é prover formas de autorregulação coletiva dos desvios individuais. Instituições erram e acertam, mas o judiciário erra, protege o erro e resiste à autocorreção – e essa conduta, em uma sociedade da informação, parece estar a cada dia enfraquecendo a opinião social positiva sobre o Judiciário, que corre grandes riscos de desmoronamento democrático.

Não se está afirmando que o Judiciário precisa do apoio popular para exercer suas funções – em especial, diante do inegável caráter contramajoritário o qual foi convocado a exercer pela Constituição da República. No entanto, sem confiança ou segurança no trabalho realizado pelos magistrados, a instituição perde o apoio popular quando posta à prova nas mais diversas tentativas de desestruturação da independência do Poder.

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Nesse sentido, ao contrário do que pensa o senso comum, retórica não deve ser vista unicamente como um meio pelo qual as decisões judiciais serão mais bem fundamentadas, ou os advogados mais preparados. Ela pode servir como um instrumento de construção de estratégias que reforcem a relevância e o ethos do direito e do Poder Judiciário, precipuamente, dentro de um contexto de conexão com os demais membros das chamadas “funções essenciais à justiça”, em busca da concretude dos valores que consideramos inegociáveis.

Assim, cumpre ao Judiciário aceitar que cabe a todos os atores do sistema judicial, como é o caso da Advocacia Pública, realizar o controle e a crítica de sua atuação, apontando eventuais erros e desvios, sem que isso configure, por si só, uma afronta ao sistema. Ao mesmo tempo, e por meio da retórica, deve-se reforçar perante a sociedade a relevância de uma democracia estável, que respeite o equilíbrio e a independência entre os poderes, a representação de minorias, a alternância de governo e o caráter contramajoritário do Judiciário.

[1] Instituto internacional de pesquisa independente Varieties of Democracy (V-Dem), da Universidade de Gotemburgo, na Suécia.

[2] Decretos 2 e 4 da Assembleia Legislativa de El Salvador.

[3] Decretos n. 144 e 145 da Assembleia Legislativa de El Salvador.

[4] Constitucion de la Republica de El Salvador, arts. 152 e 154.

[5] A primeira eleição ocorreu em 1º de junho deste ano, e além de parte dos magistrados federais, foram eleitos os novos membros da Suprema Corte de Justiça e os cinco magistrados do Tribunal de Disciplina Judicial. A participação dos cidadãos foi estimada pelo Instituto Nacional Electoral em 13,0184% (treze por cento), segundo o Instituto Nacional Electoral do México.

ALTERIO, Ana Micaela. Simposio “Reforma Constitucional al Poder Judicial Mexicano”, INTRODUCCIÓN. IberICONnect, 30 set. 2024. Disponível em: https://www.ibericonnect.blog/2024/09/simposio-reforma-constitucional-al- poder-judicial-mexicano-introduccion/. Acesso em: 30 jan. 2025.

AMOSSY, Ruth (org). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. 2a ed., 4ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2016.

APPLEBAUM, Anne. Autocracia S.A.: os ditadores que querem dominar o mundo. 1. ed. – Rio de Janeiro: Record, 2024. recurso digital [kindle].

GINSBURG, Tom; HUQ, Aziz. How we lost constitucional democracy. In: SUNSTEIN, Cass R. (Ed.). Can it happen here? Authoritarianism in America. HarperCollins, Nova York: 2018.

MENDES, Conrado Hübner. O discreto charme da magistocracia: vícios e disfarces do judiciário brasileiro. São Paulo: Todavia, 2023. E-book Kindle.

MENEZES, David Sobreira Bezerra de. Domesticando a Justiça: Como os Tribunais morrem e o que podemos fazer para salvá-los. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Direito) – Centro Universitário Christus, Fortaleza: 2024.

NIETZSCHE, Friedrich. Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral, edição ampliada. Livraria Press, 2024.

OLIVEIRA, Fabiana Luci de; CUNHA, Luciana Gross; RAMOS, Luciana de Oliveira., Medindo o apoio público ao Supremo Tribunal Federal: confiança e legitimidade institucional. Opinião Pública, volume 30, p. 1-29, Campinas: 2024. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1807-0191202430111>. Acesso em 27.10.2025.

REIS, Isaac. Análise empírico-retórica do discurso constitucional: uma contribuição para a pesquisa de base em Direito. In: CONPEDI/ UFSC (Org.) Direito, educação, ensino e metodologia jurídicos. Florianópolis: CONPEDI, 2014,   p.         70-90.                                 Disponível        em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=ad801013f6b931f3. Acesso em: 30 jan. 2025.

REIS, Isaac. Análise empírico-retórica do discurso: fundamentos, objetivos e aplicação. In: HARTMANN, Fabiano, REIS, Isaac e ROESLER, Claudia (Orgs.). Retórica e argumentação jurídica: modelos em análise (Coleção Direito, Retórica e Argumentação, v. 2). Curitiba: Alteridade, 2018, p. 121-150.

SCHLIEFFEN, Katharina Gräfin Von. Iluminismo retórico: contribuições para uma teoria retórica do direito (Coleção Direito, Retórica e

Argumentação, vol. 8). Curitiba: Alteridade Editora, 2022.

STRUCK, Jean-Philip. Interferir no Supremo é estratégia de governos autoritários. Disponivel em: https://www.dw.com/pt-br/interferir-no-supremo-%C3%A9-estrat%C3%A9gia-de-governos-autorit%C3%A1rios/a-63500876. Acesso em: 30 jan. 2025.

VELASCO-RIVERA, Mariana; OLAIZ, Jaime; PARRA PRIETO, Irene. Mexico’s constitutional democracy in crisis: the judicial overhaul is only the beginning. IACL-AIDC Blog, 12 set. 2024.

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