A 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu federalizar as investigações sobre seis homicídios e um desaparecimento ocorridos no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, no Maranhão, por entender que houve graves violações de direitos humanos, incapacidade do Estado em conduzir os casos e risco concreto de responsabilização internacional do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH).
O pedido de deslocamento de competência foi feito ao STJ pela Procuradoria-Geral da República (PGR), provocada pela Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, pela Justiça Global e pela Conectas, organizações que levaram a denúncia à Corte IDH.
O Complexo de Pedrinhas foi palco de uma série de rebeliões, execuções, torturas e conflitos entre facções, em curto período – entre janeiro de 2013 e o início de 2014, 63 detentos morreram dentro do presídio, por circunstâncias diversas. Em muitos casos, houve emprego de métodos cruéis, como decapitação e esquartejamento.
As condições desumanas às quais os presos estavam submetidos foram denunciadas à Corte Interamericana, que concedeu medidas cautelares em 2013 e medidas provisórias em 2014, 2018 e 2019, exigindo ações do Estado para evitar novas mortes, reduzir a superlotação e investigar os casos adequadamente.
Apesar das ordens do tribunal, seis das 63 mortes e um desaparecimento ficaram sem resposta judicial – os casos foram arquivados, paralisados ou sequer foram objeto de inquéritos policiais. A incapacidade do Maranhão de apurar os casos é o que motivou o pedido de federalização feito pela PGR.
Para o relator na Terceira Seção do STJ, ministro Rogerio Schietti Cruz, a ausência de investigação não é um problema isolado do Complexo de Pedrinhas, mas faz parte uma “crise sistêmica” do sistema prisional maranhense.
“O exame dos sete episódios mostra não apenas falhas pontuais, mas um colapso sistêmico da capacidade investigativa e persecutória que, à época dos fatos, vivenciava o Estado do Maranhão. Esta não é uma questão de simples morosidade ou deficiências isoladas, mas de uma disfunção institucional que comprometia as bases do Estado Democrático de Direito e a proteção dos direitos humanos fundamentais”, comentou o ministro no relatório.
Segundo o relator, o deslocamento de competência é uma forma de proteger o país juridicamente. “O deslocamento de competência para a Justiça Federal representa, nesse contexto, não apenas instrumento processual excepcional, mas verdadeira medida preventiva de proteção à responsabilidade internacional do país. A federalização das investigações pode oferecer renovadas possibilidades de esclarecimento dos fatos, identificação dos responsáveis e eventual responsabilização penal, reduzindo significativamente o risco de censura internacional”.
Cruz ressaltou que, caso as falhas não sejam prontamente sanadas, é concreta a possibilidade de o Brasil ser responsabilizado pela Corte IDH, já que há evidente similaridade entre o caso e precedentes anteriores, “especialmente quanto à ineficácia das investigações e à impunidade resultante”
“Na hipótese, a responsabilização internacional do Brasil por graves violações de direitos humanos não é mera possibilidade abstrata, mas risco concreto, especialmente no contexto excepcional do sistema prisional maranhense. As circunstâncias específicas dos sete casos sob análise, aliadas ao histórico de condenações do país em instâncias internacionais, configuram cenário de elevada vulnerabilidade jurídica”, disse o ministro.
Contexto atual
Monique Cruz, coordenadora do programa de Violência Institucional e Segurança Pública da organização Justiça Global, afirma que foram tímidos os avanços desde o período crítico em Pedrinhas e as consequentes medidas emitidas pela Corte IDH. Segundo ela, boa parte da solução oferecida pelo Estado se concentra em aumentar o número de vagas e unidades prisionais, o que não é suficiente.
“A principal solução que o Estado traz é o aumento significativo de vagas, a construção de novas unidades. Mas, quando você aumenta vagas, você aumenta o encarceramento. Não seria melhor pensar sobre medidas alternativas ao cárcere, que não coloquem a privação da liberdade em primeiro lugar? Estamos falando de uma grande massa vulnerabilizada de pessoas, que, quando privadas de liberdade, mesmo que não tenham cometido crimes violentos, absorvem problemas para a vida toda”, diz.
Monique conta que ainda há relatos de violações recorrentes nas unidades prisionais de Pedrinhas, hoje rebatizado como Complexo Penitenciário de São Luís.
“Ainda temos condições de encarceramento muito ruins. Há limitação de acesso a água, por exemplo, que só é liberada pelos agentes duas ou três vezes por dia em algumas unidades. Na triagem, as janelas são praticamente fechadas, sem iluminação e oxigenação adequadas. A violação ao direito ao banho de sol também é recorrente”, relata.
Perspectiva
A representante da Justiça Global participou de uma audiência privada na Corte IDH, em 21 de outubro, com participação das organizações peticionárias e de representantes da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) e da Secretaria Estadual de Administração Penitenciária do Maranhão (Seap).
A principal deliberação, segundo ela, foi a criação de uma mesa de trabalho com a participação do Estado para buscar soluções efetivas e estruturantes para os presídios do Maranhão. “Reconhecemos que houve avanços, mas a situação ainda é grave”.
Monique vê com bons olhos o deslocamento de competência do caso. “A federalização nos aponta um caminho de mudança, que não nos diz respeito só ao que acontece na prisão. Antes de tudo, é a chance de demonstrar como o Estado brasileiro continua não valorizando pessoas que são consideradas ‘menos humanas’. Aí estão falando de racismo mesmo. Esta é a oportunidade de discutirmos instrumentos, fluxos e compromissos do Brasil, para enfim tentarmos construir algo duradouro”.