Nos últimos anos, o setor jurídico aprendeu a conviver com uma profusão de sistemas digitais. Há, dentre outros, softwares de gestão do ciclo de vida de contratos, de compliance, de jurimetria e de gestão processual. Todos úteis, em grande parte caros, e todos, em maior ou menor grau, incompletos. O diretor jurídico ou o sócio de escritório conhece bem o contexto: sempre falta uma funcionalidade, uma integração, uma resposta rápida que facilite processos e transforme dados em valor.
Em artigo anterior, descrevi as sete fases de surgimento e adoção de softwares jurídicos, começando pelos básicos softwares de consulta a leis e jurisprudência e culminando com a chegada dos agentes cognitivos, capazes de executar tarefas de ponta a ponta e inaugurar a chamada revolução cognitiva no direito. Ali expus a teoria.
Contudo, entre a teoria e a prática há uma etapa intermediária essencial: o desafio de aplicar inteligência sobre os softwares legado para operações jurídicas sem desperdiçar os investimentos feitos, nem esperar por uma substituição total de sistemas. Esse é passo que leva ao corolário e conclusão inevitáveis: “A inteligência artificial torna o software jurídico mais inteligente. Seria estranho, quase absurdo, imaginar se fosse diferente”. O conceito é simples, quase óbvio, mas redefine a estratégia digital do setor. A IA não substitui o software legado; ela o completa.
Da substituição à elevação
Durante décadas, a substituição em tecnologia da informação foi sinônimo de inovação. Planilhas foram trocadas por softwares, sistemas locais por nuvens, processos estáticos por automações. Na nova realidade, a inteligência artificial pode até desaguar em uma nova geração de softwares dedicados (os chamados Nativos em IA), mas essa tende a ser a exceção. O uso mais eficiente da inteligência artificial pode até passar pela substituição, mas, seu valor sistêmico estará no que podemos chamar de acréscimo de camada.
Isso porque, agentes e assistentes de IA têm capacidade inerente de ler informações espalhadas por diferentes plataformas, entender o significado jurídico de cada uma e conectá-las para produzir algo novo: um contrato completo, um relatório de compliance, um resumo de due diligence. É a lógica da camada cognitiva sobre os legados em matéria de sistemas jurídicos.
Por que a IA é capaz disso?
A explicação é tão técnica quanto intuitiva. A IA faz essa integração de forma inteligente porque ela própria é inteligente, no sentido de aprender, adaptar-se e operar por significado, não por instruções fixas. Enquanto os softwares legados para operações jurídicas dependem de integrações de código para uma mesma função, a IA interpreta linguagem natural, o idioma do jurídico (advocare: chamar, pela palavra, para junto de si), atuando como ponte entre sistemas heterogêneos.
Esses predicados, se materializam em vantagens competitivas significativas. A IA é, a depender da aplicação, tende a ser mais econômica que os softwares tradicionais. Isso porque se baseia em LLMs (Large Language Models) já treinados em larga escala, que podem ser ajustados ao contexto jurídico de cada organização sem exigir desenvolvimento significativo.
Uma boa metáfora é que os LLMs são a argila, e a IA especializada o utilitário moldado a partir da argila. Desdobrando a imagem, no software tradicional o processo de extração e beneficiamento da argila não está incluído, devendo ser iniciado praticamente “do zero”. Essa diferença estrutural explica por que a IA escala onde o software tradicional expande custo.
Isso torna a IA, além de mais econômica, mais rápida. Os modelos aprendem com dados existentes, e não precisam ser codificados linha a linha. Os elementos estruturantes da IA, são dados e processamento, não linhas de código. No software tradicional o volume maior está no esforço de programação, o que leva mais tempo e, consequentemente, torna o processo mais custoso.
Outra vantagem é a flexibilidade: a arquitetura linguística permite à IA entender o conteúdo de um documento, o sentido de uma cláusula ou o contexto de uma obrigação. É exatamente por isso que pode se conectar a qualquer base de informação, antiga ou nova.
Essas características, explicam, em parte, porque a IA, mesmo que não deliberadamente, seja perfeita para integrar sistemas e gerar camadas de inteligência sobre esses mesmos sistemas. Nesse ponto, é importante amplificar a ideia por outro prisma: a IA, além de integrar funcionalidades já existentes, acresce camadas cognitivas. Os sistemas ficam mais inteligentes porque passam a operar por significado, não apenas por instruções. Alguns exemplos das novas capacidades resultantes:
um agente cognitivo pode extrair informações de um CLM, combiná-las com dados de compliance e gerar automaticamente um relatório de obrigações;
ao ser exposta a documentos e padrões internos, a IA aprende o “dialeto” da organização. A economia de tempo e praticidade decorrente dessa personalização automática não encontra paralelo em outras soluções;
a IA interpreta objetivos jurídicos, identifica riscos ou lacunas e oferece recomendações ajustadas ao contexto, operando por significado e não por etapas predefinidas.
Consequências estratégicas
A integração inteligente é uma estratégia lateral de modernização. Permite gerar ganhos imediatos de eficiência e qualidade sem reconstruir toda a infraestrutura tecnológica. Um departamento jurídico pode continuar utilizando seu CLM, sua base de compliance e seu repositório de documentos, só que agora com agentes cognitivos que criam contratos, compilam relatórios e interpretam resultados. O escritório de advocacia pode transformar entregas tradicionais em operações automatizadas, supervisionadas por advogados e executadas por IA.
Quando um agente de IA aprende os padrões contratuais de uma empresa, ele pode gerar novas versões automaticamente. Quando interpreta dados de due diligence, monta relatórios completos. Quando analisa políticas de compliance, sugere atualizações.
A integração inteligente coloca o gestor jurídico diante de duas estratégias claras. A primeira é elevar o que já existe, preservando o legado e acrescentando inteligência onde ele não alcança. É uma evolução estrutural, financeiramente razoável e de implantação simples, feita sem pausas e mantendo fluxos já conhecidos, reduzindo o desgaste típico de substituições completas.
A segunda estratégia é adotar soluções nativas para desbloquear o que o legado não consegue resolver. São intervenções pontuais, mas de alto impacto, capazes de destravar análises, triagens e entregas que antes eram inviáveis. A especialização de modelos tende a ser mais barata, rápida e pode gerar ganhos desproporcionais, produzindo valor imediato.
Consultorias especializadas ajudam a comparar essas rotas, oferecendo um menu claro do que pode ser integrado e do que pode ser resolvido com IA nativa. Não se trata de escolher entre uma ou outra, mas de combiná-las: a estratégia sistêmica melhora a base; a pontual resolve gargalos; juntas inauguram a modernização realmente inteligente do jurídico.
Aniquiladora de frustrações e geradora de surpresas
A IA exerce um papel duplo. É aniquiladora de frustrações porque elimina limitações históricas: funcionalidades faltantes, integrações frágeis, processos rígidos, custos altos e a sensação de que os sistemas quase entregam o prometido. Ao operar por significado, e não por instrução fixa, costura plataformas antes isoladas, interpreta documentos complexos e transforma dados dispersos em entregas completas.
Mas a IA também é geradora de surpresas. Surpresas de produtividade, escala e impacto. Ao elevar o legado, cria ganhos exponenciais com implantação leve. Ao atuar em soluções nativas, inaugura capacidades inéditas. O que antes era limite se torna ponto de partida.
A decisão não é dicotômica: as duas estratégias se complementam. No essencial, a IA redefine o padrão tecnológico do jurídico porque aniquila o que frustra e inaugura o que surpreende. Essa será a marca definitiva da modernização cognitiva no direito.