A difícil tarefa de composição do STF

A Constituição da República vive um paradoxo que precisa ser enfrentado. É fácil explicar ao leitor leigo. Ela proíbe expressamente a escolha dos juízes para o julgamento das causas. As partes de um processo criminal não podem escolher o seu julgador. É o que se chama de regra de juiz natural.

O motivo também é de fácil compreensão: se a acusação pudesse escolher o julgador de um processo criminal, o réu ficaria indefeso porque teríamos a escolha óbvia de um julgador focado nos interesses do acusador. Do mesmo modo, se a escolha fosse ditada pelos interesses do réu, não haveria julgamento imparcial. Ele estaria protegido, blindado, comprometendo o julgamento e, por óbvio, a correta aplicação da Justiça. Em nenhuma das duas hipóteses haveria imparcialidade, requisito essencial para efetividade da jurisdição penal, no desencargo de sua importante tarefa.

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Qualquer que seja o interesse em julgamento, simplesmente não se pode escolher juízes. É a única e óbvia forma de se garantir solução equânime e equilibrada, com paridade de armas entre as partes litigantes.

Por idêntico motivo, a mesma Constituição também proíbe, igualmente de forma expressa, os tribunais ou juízos de exceção, que só ocorrem em hipóteses completamente excepcionais, em tempos de guerras externas e, ainda assim, perante tribunais penais internacionais, baseados na escolha do juiz depois do fato a ser julgado ter acontecido.

E qual o motivo do cuidado? É com a escolha aleatória, ditada por regras pré-estabelecidas de competência, que se assegura de forma plena a democracia dos julgamentos submetidos à soberania do Poder Judiciário. Sem ela, qualquer que fosse a causa ou a ótica do julgador, a solução encontrada já estaria antecipadamente comprometida para um dos dois lados do processo.

É exatamente aí que reside o paradoxo da Carta Magna. Ao mesmo tempo em que afirma a imparcialidade dos julgamentos, ela assegura ao presidente da República a prerrogativa da escolha dos integrantes do Supremo Tribunal Federal. Seja qual for o ocupante do poder no momento de uma aposentadoria no Supremo, é ele que terá a incumbência de escolher o sucessor na corte, submetido o nome apenas à sabatina do Senado.

E é assim exatamente no topo da hierarquia dos tribunais brasileiros. Com isso – e daí o paradoxo – presidentes da República conseguem fazer maioria no STF (onde tudo se resolve exatamente por maioria de votos). Está formado o cenário perfeito para julgamentos de ocasião, alterações pontuais de regras processuais e acomodação de situações políticas.

Não é um problema novo da Justiça brasileira. Ele ocorre há décadas e vai se sucedendo qualquer que seja a forma de poder acomodada no planalto central. Daí porque a população vê e quase nunca compreende as constantes mudanças de rumo nos entendimento ditados pelos julgamentos do STF, com reflexo direto nas instâncias inferiores.

Tomemos por base um exemplo bastante atual. Ele reside na mudança frequente daquilo que se entende por julgamento em razão de foro privilegiado (na verdade, foro especial por prerrogativa de função). Durante décadas, esses julgamentos existiam para proteger o cargo público de maior relevância e não os seus ocupantes propriamente ditos. Com isso, quando alguém perdia o mandato ou o próprio cargo o processo retornava imediatamente à vara de origem, caso ainda não tivesse sido concluído.

Depois de um tempo – e em razão do crescimento desse tipo de julgamento – o STF mudou a regra novamente. Passou a julgar somente os crimes que tivessem alguma ligação com o cargo público e, não, qualquer delito praticado por seu ocupante de momento.

Com isso, casos de homicídios que, por conta do “privilégio”, eram julgados no STF e não no Tribunal do Júri, seu juiz natural, retornaram para o referido Tribunal Popular. A corte fez a mudança para desafogar o crescimento expressivo de casos sob sua jurisdição. E as coisas seguiam assim quando o mesmo STF resolveu mudar a regra novamente, agora pela terceira vez.

Atualmente, ainda que depois do fim do cargo público, o caso permanece sob julgamento da corte, bastando que os fatos a serem julgados tenham ocorrido durante o exercício do cargo ou função. Vale dizer, três entendimentos muito diferentes, ditados por momentos diferentes da vida política nacional, decorrentes de regras processuais alteradas em curto período. É o que jamais ocorreria se as regras de competências fossem respeitadas tal como pré-estabelecidas pela lei ou pela própria Constituição.

Atualmente, a imprensa noticia que a atual estratégia do governo brasileiro é a de escolher o maior número de ministros do STF para os próximos anos, talvez até apressando a aposentadoria precoce de alguns dos seus atuais integrantes. Isso ocorre, também segundo se lê frequentemente, para não deixar a escolha em mãos de um governo futuro e desconhecido, resultante das urnas de 2026. Afinal, todos querem um Judiciário para chamar de seu.

A reflexão, é bom insistir, extrapola ideologias políticas. O modelo atual é péssimo. É assim agora, foi assim no governo passado, que hoje reclama da regra e, também, nos anteriores. Tudo que não aconteceria se a regra do juiz natural fosse respeitada, para se pôr a salvo a independência dos julgamentos, distanciada dos interesses das partes.

Porém, para que isso fosse possível, haveria necessidade de se alterar a Constituição. E se a alteração fosse consagrada em um modelo que observasse a independência do Judiciário, aí sim a imparcialidade e o respeito às regras representariam segurança e sensação de Justiça, sentimentos que hoje – convenhamos todos – estão bastante distantes da impressão da maioria da população brasileira.

Pois bem, como as reclamações seguidas continuarão persistindo, não é imprudente refletir sobre uma alteração constitucional que descentralize o processo de escolha atual. Importante reconhecer que o modelo de escolha ditado pela vontade predominante do chefe do Executivo é – com maior ou menor participação de outros agentes – uma sistemática do mundo moderno e civilizado.

Funciona também em outros países, como Estados Unidos (presidente e Senado), Itália (parlamento, presidente e Tribunais Superiores), França (presidente, Assembleia Nacional e presidente do Senado), Alemanha (votação, entre o Conselho Federal e o Parlamento Federal) e Reino Unido (Comissão de Seleção, primeiro-ministro e monarca). São opções democráticas que alternam critérios políticos e de merecimento.

No Brasil, entretanto, a escolha é nitidamente política, ainda que a própria Constituição exija notável saber jurídico. Agora, ela representa o embate entre o presidente da República e o presidente do Senado. É imperativa a necessidade urgente de alteração do sistema, desgastado com a tendência sempre presente de sobreposição da vontade do governante sobre o pensamento dos integrantes da Corte Suprema, que deveria se guiar exclusivamente por critérios de independência e imparcialidade.

Não se trata propriamente de um pleito inédito. Seguramente, há espaços para modificações. Uma ideia que pode e merece ser estudada é a formação de uma lista tríplice. Ela poderia ser elaborada por votação direta do próprio Supremo Tribunal Federal, que, em última análise, tem a primazia de fixar critérios de excelência de seus integrantes: o dito notável saber jurídico e o reconhecimento dos serviços prestados pelo candidato ao Direito.

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Assim elaborada a lista, daí sim ela teria como ser submetida à escolha livre do presidente da República, com a posterior sabatina do Senado. Outra perspectiva seria a integração, no processo de escolha, do próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ), nascido com a reforma do Judiciário no texto da Constituição, em 2004, como órgão de controle externo dos rumos da magistratura e dos juízes brasileiros.

Caso mudanças desta natureza fossem concretizadas, o processo de escolha passaria pelo crivo dos Três Poderes da República e minimizaria muito os efeitos danosos da tendência de escolha direcionada a interesses pessoais de governantes, modelo ditado pelas conveniências e peculiaridades do chefe do Executivo, com efeitos diretos e, na mesma proporção, danosos, nos julgamentos do Supremo Tribunal Federal.

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