O direito contratual público brasileiro ainda sofre de um significativo atraso teórico e metodológico, resultado de um apego excessivo às suas tradições dogmáticas (muitas delas vindas de outros países).
Essa rigidez, construída sobre os pilares do regime jurídico-administrativo clássico, gerou um sistema autocentrado, voltado mais à preservação de suas categorias históricas – supremacia, prerrogativas, formalismo, controle – do que à busca de soluções efetivas para os desafios contratuais contemporâneos.
Esse fechamento dogmático impediu o direito contratual público de dialogar com outras disciplinas, tanto jurídicas (como o direito civil, o direito empresarial e o direito da concorrência), quanto extrajurídicas (como a economia, a gestão pública e a teoria das organizações). Por muito tempo, prevaleceu a ideia de que a contratação pública deveria ser pensada a partir de suas próprias categorias, isoladas da experiência civilista e da racionalidade negocial privada.
O cenário, no entanto, começou a se transformar neste século 21. A aproximação entre o direito administrativo e a análise econômica do direito – fenômeno que pode ser lido como parte de uma (saudável) “americanização” do direito administrativo brasileiro – vem promovendo um enriquecimento gradual da teoria contratual pública.
Obras e experiências recentes têm mostrado que a racionalidade econômica pode contribuir para decisões mais eficientes, proporcionais e sustentáveis na celebração e execução de contratos públicos. Pensemos na LINDB (e consequencialismo) e da Análise de Impacto Regulatório (AIR). Contudo, essa abertura ainda é parcial e assimétrica. O diálogo com a economia e com a análise de incentivos é mais visível, mas o mesmo não se pode dizer em relação ao direito privado.
Curiosamente, o direito contratual público ainda resiste a aprender com o direito civil, mesmo num contexto em que boa parte da doutrina já reconhece a superação das fronteiras rígidas entre o público e o privado. O resultado é um empobrecimento teórico: a dogmática contratual pública se fecha em torno de suas próprias categorias e se recusa a dialogar com conceitos que poderiam lhe trazer evolução e eficiência.
Algumas causas desse afastamento histórico podem ser identificadas. Além do apego à formação histórica e à ficção da autonomia do contrato administrativo, no Brasil a questão parece ter sido potencializada por um certo orgulho “corporativo” em torno da “ciência” do direito administrativo, que, em muitos momentos, se fechou sobre si mesma e se desinteressou da solução de problemas concretos. A tradição doutrinária nacional formou-se com pouca preocupação empírica e excessiva reverência conceitual, cultivando um discurso marcado pela busca de distinções – e não de conexões – com outros ramos do Direito.
Essa tendência foi agravada por um enfoque desmedido na licitação como elemento diferenciador do contrato público, a ponto de se transformar o procedimento licitatório em verdadeiro protagonista da dogmática contratual, relegando o contrato a uma posição secundária.
Também contribuiu para esse isolamento a exaltação da “natural” exorbitância como fenômeno estrutural e como disciplina supostamente indispensável à realidade da Administração Pública, ainda que com evidentes externalidades negativas sobre a eficiência, a segurança jurídica e a continuidade das relações contratuais.
A isso se soma uma positivada e difusa ideia de autossuficiência dos contratos administrativos, assentada na previsão legal de que a teoria geral dos contratos se aplicaria apenas de forma supletiva[1] (embora raramente se indicasse quando e como essa aplicação seria admissível). Tal ressalva acabou operando, na prática, como uma interdição metodológica: em vez de abrir espaço ao diálogo entre regimes, ela serviu como justificativa para o fechamento conceitual e para a perpetuação de um discurso quase que de “pureza” do direito contratual público.
São, em verdade, premissas equivocadas desde sempre. O contrato é uma categoria universal do Direito[2], e não há fundamento teórico nem funcional para impedir que o direito contratual público se beneficie das contribuições da teoria geral dos contratos, extraída do direito privado. O fechamento interpretativo não apenas empobrece o debate, mas compromete a coerência do próprio sistema jurídico, que deve se fundar em princípios estruturantes comuns – como boa-fé, equilíbrio, função social, cooperação e confiança legítima.
Há diversos campos em que a teoria geral dos contratos e o direito privado podem ser incorporados para o aperfeiçoamento e a busca de soluções práticas no direito contratual público. Entre eles, destacam-se a autonomia da vontade, que convida à revisão da tradicional resistência em reconhecer margens de autorregulação nos vínculos contratuais administrativos; o dever de renegociar, expressão da boa-fé objetiva e mecanismo essencial de racionalização das relações de longa duração; os critérios de indenização e de reequilíbrio, cuja disciplina ainda carece de maior coerência com a lógica reparatória e de mitigação de danos do direito privado; o princípio da preservação do negócio jurídico, que pode servir de base para uma leitura menos sancionatória e mais funcional da execução contratual; e, por fim, o adimplemento substancial, fundamental para a lógica de dosimetria no campo do direito administrativo sancionador.
Se a análise econômica do direito pôde ser acolhida como fonte legítima de renovação para a contratação pública, com muito mais razão o pode o direito privado, que compartilha com o direito público a mesma matriz contratual. Superar o compromisso com o atraso exige reconhecer que o direito administrativo não é uma ilha dogmática, mas parte de um sistema em constante diálogo e evolução.
O verdadeiro desafio contemporâneo é transformar esse diálogo em um instrumento de permanente reconstrução do direito contratual público, tornando-o mais aberto, coerente e comprometido com a racionalidade prática.
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Agradeço a Aline Câmara de Almeida, Flavio Amaral Garcia e Egon Bockmann Moreira pela leitura do texto e contribuições essenciais. Agradeço também ao Anderson Schreiber, pelo incentivo e pelo trabalho – ainda não publicado – denominado Contratos Administrativos e Direito Privado à Luz da Lei 14.133/21, que me inspirou a tentar aprofundar o estudo do tema. O artigo teve como fundamento a aula ministrada no curso sobre a Nova Lei de Licitações organizado pelo CEJUR PGE/RJ
[1] A redação do art. 54 da Lei nº 8.666/93 foi materialmente reproduzida no art. 89 da Nova Lei de Licitações.
[2] ROPPO, Enzo. O Contrato. Tradução de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Almedina, 2009, p. 7.