O Senado Federal e a Câmara dos Deputados discutem, atualmente, a criação de um exame de proficiência para médicos a partir dos projetos de lei 2.294/24 e 785/2024. À primeira vista, a proposta parece oferecer uma solução simples para os problemas da formação médica no Brasil. Mas soluções simplistas em temas complexos quase sempre resultam em injustiça. A medida ameaça o sonho de uma vida inteira de muitos estudantes e famílias enquanto cursos que oferecem formação de baixa qualidade ficam ilesos.
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É preciso dizer com clareza: o Brasil já possui instrumentos sólidos para avaliar a formação médica. Em 2025, foi lançado o Exame Nacional de Avaliação da Formação Médica (Enamed), avaliação anual que permite identificar fragilidades dos cursos, oferecer parâmetros objetivos e responsabilizar as instituições. A partir de 2026, escolas mal avaliadas estarão sujeitas a sanções severas: proibição de novos ingressos, suspensão da ampliação de vagas e bloqueio de acesso a programas como Fies e Prouni. Ou seja, o Estado já dispõe de mecanismos para agir diretamente sobre quem deve ser responsabilizado: os cursos de má qualidade.
Há, ainda, um equívoco de origem na proposta em debate. A prerrogativa constitucional de regular a educação superior é do Ministério da Educação. Os conselhos profissionais cumprem um papel relevante na regulação do exercício profissional e na defesa da ética médica. Mas não lhe cabe assumir uma função que é, por natureza, de Estado. Ampliar esse poder a um conselho profissional seria abrir caminho para sobreposição corporativa e insegurança jurídica, como já ocorreu em outras profissões.
Defensores da medida alegam que a má avaliação de cursos de Medicina coloca em risco a população. Os números, contudo, não sustentam essa tese: os resultados mais recentes do Conceito Preliminar de Curso (CPC) mostram que a maioria das escolas do país obteve conceitos 3 e 4; quase metade das públicas e privadas alcançou 4 ou 5; apenas 9% das particulares e 4,5% das públicas ficaram nas faixas mais baixas. Há, sim, problemas pontuais, mas o panorama geral não justifica o alarde usado para sustentar a criação de uma prova.
O efeito pedagógico de um exame de proficiência também seria desastroso. O internato, os cenários de prática, os laboratórios e a formação estruturante em relação ao SUS – conquistas recentes da política educacional, inclusive previstas pela Lei do Mais Médicos – perderiam espaço para cursinhos preparatórios. Fazer prova é uma competência; ser médico é outra muito mais complexa, que exige humanismo, prática clínica e compromisso social.
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Outro risco é a elitização. Proliferariam cursinhos caros, inacessíveis para grande parte dos estudantes, ampliando desigualdades. E, ao contrário de outras áreas profissionais em que o bacharel pode desempenhar funções correlatas mesmo sem habilitação plena, na Medicina não há essa alternativa: quem não obtém o registro simplesmente não pode atuar. O resultado seria um contingente de profissionais sem função social específica. Estaríamos, assim, empurrando milhares de jovens para a informalidade ou para o exercício ilegal da profissão.
Chamar essa proposta de solução é, em essência, uma medida cosmética: dá a aparência de rigor, mas não enfrenta as causas reais. A agenda que vem sendo construída nos últimos anos, com políticas públicas estruturantes, é o caminho que precisa ser fortalecido.
Não há atalho para a qualidade da formação médica. Um exame de proficiência, além de injusto e ineficaz, apenas desviaria o foco do que realmente importa: assegurar que a formação médica no Brasil esteja à altura das necessidades da população.