Reforma tributária: 3 mecanismos contra a regressividade, mas ainda longe da progressividade

O sistema tributário brasileiro é marcado pela prevalência de impostos sobre o consumo, o que leva a uma regressividade significativa e penaliza pessoas de baixa renda. Enquanto países da OCDE compartilham um foco em receitas derivadas de impostos sobre a renda e a riqueza, o Brasil mantém mais de 45% da receita em impostos sobre bens e serviços, frente a uma média de 32% nesses países (OCDE, 2023) [1].

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Esse cenário não é fruto de mero acaso, mas de escolhas institucionais historicamente consolidadas. A descentralização da competência tributária e as dificuldades administrativas para tributar renda e patrimônio levaram à priorização de bases de arrecadação mais amplas e de fiscalização mais simples, como o consumo. A isso se soma a guerra fiscal dos Estados, resultante da concessão indevida de incentivos fiscais, que não apenas desestruturou o sistema, mas também adicionou distorções, competindo e aumentando os custos para o consumidor final.

A natureza regressiva do modelo brasileiro é testada empiricamente. De acordo com pesquisas do IPEA e da Receita Federal, os 10% mais pobres comprometem aproximadamente 33% de sua renda com tributos indiretos, enquanto os 10% mais ricos destinam apenas 10% de sua renda a esse tipo de tributação (DIEESE; IPEA; SINDIFISCO, 2011) [2]. Em contraste, em países desenvolvidos, o impacto regressivo é compensado por impostos progressivos sobre a renda e a riqueza, não tão relevantes no Brasil

Nesse contexto, a Emenda Constitucional nº 132/2023 e a Lei Complementar nº 68/2024 representam um esforço de racionalização do sistema, aproximando-o de padrões internacionais. Ao instituírem o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), inspirados no modelo de imposto sobre valor agregado (IVA), as normas pretendem simplificar a tributação, eliminar a cumulatividade e ampliar a transparência. Ainda que a dependência dos tributos sobre consumo permaneça elevada, a reforma traz inovações relevantes ao introduzir três mecanismos voltados à mitigação da desigualdade: o cashback, as alíquotas diferenciadas e o Imposto Seletivo.

O cashback surge como inovação no sistema brasileiro ao prever a devolução parcial de tributos a famílias de baixa renda inscritas no CadÚnico, o que diminui a carga tributária efetiva sobre o consumo básico. Experiências internacionais indicam potencial alívio imediato às camadas vulneráveis, mas sua eficácia dependerá da calibragem das alíquotas, da atualização do cadastro e da transparência dos critérios. Sem fonte orçamentária estável, o mecanismo corre o risco de frustrar as expectativas sociais que pretende atender.

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Por sua vez, as alíquotas diferenciadas visam proteger bens e serviços essenciais — como alimentos, medicamentos e itens básicos —, evitando que a tributação pese de forma desproporcional sobre o consumo indispensável. Embora comuns em sistemas de IVA europeus e relevantes para a equidade, exigem cautela: podem criar espaço para pressão setorial e muitas isenções, recriando a complexidade que a reforma busca remover. O desafio aqui será encontrar uma maneira de reconciliar simplicidade técnica e equidade social sem transgredir a neutralidade do sistema.

O Imposto Seletivo, por sua vez, incidirá sobre bens prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, por exemplo, produtos de tabaco, bebidas alcoólicas e combustíveis fósseis. De caráter extrafiscal, busca desestimular o consumo e internalizar custos sociais e ambientais, podendo financiar políticas de saúde e sustentabilidade. Sua eficácia, no entanto, dependerá de regulamentação: sem compensações adequadas, pode reforçar a regressividade, já que parte desses bens também é consumida por famílias de baixa renda. A vinculação dos recursos a programas sociais será determinante para sua legitimidade.

Esses três instrumentos compõem o esforço mais visível da reforma para conciliar simplificação tributária com justiça social. Trata-se de avanço inegável em um sistema que, até então, pouco se preocupava em mitigar a regressividade estrutural. Ainda assim, é importante reconhecer que os mecanismos, embora relevantes, não resolvem o problema de fundo: a dependência excessiva da tributação sobre o consumo. Projeções oficiais indicam que IBS e CBS continuarão respondendo por parcela significativa da arrecadação em relação ao PIB, o que evidencia a necessidade de avançar em reformas complementares voltadas à tributação da renda e do patrimônio (BRASIL, 2023; OCDE, 2023; IPEA, 2023)[3].

Nesse contexto, a comunidade acadêmica e as instituições internacionais têm repetidamente enfatizado que o sistema de tributação precisa ser reformado no Brasil em um sentido mais amplo, tanto no sentido de modernizar o sistema de consumo quanto no de repensar a tributação dos mais ricos, sobre lucros e dividendos em si, bem como aprimorar os impostos sobre a propriedade, como IPTU e ITCMD. Esses ajustes seriam fundamentais para que o país se aproximasse de um modelo fiscal mais progressivo, capaz de reduzir desigualdades de forma estrutural e não apenas mitigatória.

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A reforma inaugurada pela EC 132/2023 e pela LC 68/2024, portanto, deve ser vista como um ponto de partida e não como ponto de chegada. A eficácia de seus mecanismos exigirá regulamentação rigorosa, monitoramento constante dos efeitos distributivos e disciplina política para evitar ao máximo a multiplicação de exceções que corroeriam a simplicidade do novo regime. Mais do que isso, será necessário articular essas medidas com políticas públicas de proteção social e de fortalecimento da tributação direta.

O papel da comunidade jurídica será decisivo: acompanhar a implementação da reforma, avaliar seus impactos e propor ajustes para que a política tributária cumpra sua função constitucional de promover justiça social e reduzir desigualdades. Afinal, a Constituição de 1988 estabeleceu como norte um sistema tributário orientado pela capacidade contributiva e pela solidariedade fiscal — parâmetros que ainda não se concretizaram plenamente.

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Em suma, a reforma tributária representa avanço histórico e cria instrumentos promissores para mitigar a regressividade. Contudo, sua efetividade dependerá da qualidade da regulamentação, da capacidade de resistir a pressões setoriais e da adoção de medidas adicionais sobre renda e patrimônio. O desafio que se coloca ao Estado e à sociedade é transformar a promessa de equidade em realidade concreta, consolidando um modelo fiscal mais inclusivo, progressivo e transparente.

[1] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE). Revenue Statistics 2023: Tax revenue trends in the OECD. Paris: OECD Publishing, 2023. Disponível em: https://www.oecd.org/tax/revenue-statistics-2522770x.htm. Acesso em: 01 jul. 2024.

[2] DIEESE; IPEA; SINDIFISCO. A progressividade na tributação brasileira: por maior justiça tributária e fiscal. São Paulo: DIEESE; IPEA; SINDIFISCO, 2011. Disponível em: https://www.dieese.org.br/cartilha/2011/cartilhaJusticaFiscalTributaria/index.html?page=14. Acesso em: 01 jul. 2024.

[3] BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária.  Relatório Executivo da Reforma Tributária. Brasília, 2023. Disponível em: https://www.gov.br/fazenda/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/reforma-tributaria/documentos/relatorio-executivo-reforma-tributaria.pdf. Acesso em: 01 jul. 2024.

ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE). Revenue Statistics 2023: Tax revenue trends in the OECD. Paris: OECD Publishing, 2023. Disponível em: https://www.oecd.org/tax/revenue-statistics-2522770x.htm. Acesso em: 01 jul. 2024.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Notas sobre os impactos distributivos da reforma tributária sobre o consumo. Brasília: IPEA, 2023. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/230703_nt_impactos_distributivos_reforma_tributaria.pdf. Acesso em: 01 jul. 2024.

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