A conta invisível da tarifa zero

Na última semana, a Câmara Municipal de Belo Horizonte rejeitou em primeiro turno o projeto que se propunha instituir a tarifa zero no transporte coletivo. Foram 30 votos contrários e 10 favoráveis. Como em outras cidades, a reação foi imediata: afinal, quem paga a conta?

É inegável que as fontes de financiamento importam e merecem atenção, sobretudo dada a baixa progressividade observada no financiamento do transporte público urbano no Brasil, conforme aponta estudo recente do IPEA. Discutir quem paga é parte essencial da equação. E, quanto a isso, a resposta tradicional é conhecida. Se não é o usuário direto, o financiamento virá dos cofres públicos — tributos, subsídios cruzados, fundos setoriais ou do setor empresarial. É o raciocínio do “não existe almoço grátis”, lição número um de qualquer aula de introdução à economia.

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A outra metade da equação, contudo, raramente aparece no debate: como a conta tarifária é feita, e se o cálculo cria, de fato, incentivos para a eficiência e qualidade. No transporte coletivo brasileiro ainda predomina o modelo de regulação conhecido como “cost plus”: a tarifa resulta da soma dos insumos — combustível, folha de pagamento, manutenção, depreciação da frota, capital — acrescida da remuneração do operador. Divide-se o total do custo do sistema pelo número de passageiros e o resultado é a tarifa.

O modelo teve relevância em fases iniciais de estruturação do setor, quando o foco era assegurar cobertura de custos e a continuidade do serviço. Mas, diante da necessidade atual de eficiência e sustentabilidade, tornou-se disfuncional: neutraliza o risco do operador e desestimula inovação e a busca por produtividade Com efeito, essa lógica transfere para o usuário (ou para a sociedade) o risco da ineficiência, invertendo a lógica do princípio da modicidade tarifária. Se os custos sobem, a tarifa sobe; se a demanda cai, a tarifa sobe.

Essa lógica muda um pouco quando a remuneração é feita por quilômetro rodado, mas permanece uma verdade: pouco importa se há desperdícios, rotas mal planejadas ou baixa produtividade. Tudo é incorporado ao cálculo, como se a revisão tarifária fosse uma mera homologação administrativa de custos, sem considerar a desejável alocação de riscos entre poder concedente e operador.

É como se o cliente de um restaurante pagasse a conta sem ver a cozinha: não importa se os ingredientes foram mal aproveitados, se o fogão consome mais gás que o necessário ou se há desperdício no preparo. A conta chega, independentemente da eficiência – e qualidade – alcançadas. A diferença é que, no exemplo do restaurante, existe concorrência: se a experiência não satisfaz, o cliente pode escolher outro lugar.

Já no transporte coletivo urbano, o serviço é prestado em regime de exclusividade, típico de monopólio natural. Sem alternativa direta, torna-se ainda mais importante que a regulação seja bem desenhada, de modo a equilibrar custos e criar incentivos à eficiência e qualidade. E essa relevância, vale alertar, se dá em qualquer forma de financiamento: seja pelos usuários, seja em modos alternativos, como o “tarifa zero” ora em debate.

Estudo Nacional de Mobilidade Urbana do BNDES (2025), em sua seção de benchmarking internacional, destaca experiências como Londres, Bogotá e Santiago que consideram elementos de qualidade da remuneração. Em Londres, as operadoras de ônibus são remuneradas por quilômetro rodado, e parte do pagamento depende de indicadores de pontualidade e confiabilidade.

Em Bogotá, o sistema BRT TransMilenio combina pagamento por quilômetro com metas de eficiência energética da frota, de modo que a rentabilidade depende da busca permanente por produtividade.

Já em Santiago, parte da remuneração das empresas está condicionada a metas de regularidade e qualidade do serviço, monitoradas por pontualidade, frequência, condição da frota, satisfação dos usuários, eficiência operacional, emissões e segurança. Nessas experiências, o operador não é remunerado apenas pela prestação do serviço, mas também por otimizar o uso dos recursos e/ou por prestar serviços de qualidade.

É possível ir além. O Brasil tem instrumentos que podem inspirar o setor. Em outras áreas de infraestrutura — como distribuição de energia elétrica e concessões de rodovias — aplica-se o chamado fator X, cláusula contratual de revisão tarifária que busca capturar ganhos de produtividade. Se o operador reduz custos abaixo da referência, retém parte do ganho por um período, enquanto a outra parte retorna ao usuário em tarifas mais baixas.

É um modelo de sharing de produtividade que cria incentivo para inovar e otimizar recursos, beneficiando concessionárias e sociedade. Adaptado ao transporte urbano, ganhos como menor consumo de combustível, manutenção mais barata ou maior vida útil da frota poderiam ser compartilhados de forma equilibrada, em vez de absorvidos integralmente em revisões tarifárias, já que isso não geraria incentivos para que de fato ocorressem. Assim, todos se beneficiam: o operador, que é estimulado a inovar, e o usuário, que paga menos ou demanda menor subsídio.

Em termos regulatórios é necessário pensar no deslocamento da lógica tradicional de “cost plus”, em que todo custo declarado é repassado à tarifa, para arranjos próximos ao modelo de “price cap”. Assim,cria-se um incentivo econômico claro para otimizar recursos e inovar. Incorporar um componente de sharing de produtividade a esse arranjo — como já ocorre em setores de infraestrutura — poderia aproximar o transporte coletivo urbano de uma regulação mais moderna e orientada a resultados. Isso, é claro, depende de contabilidade regulatória transparente, auditoria independente e mecanismos para evitar manipulações contábeis.

E quanto à tarifa zero em si? A experiência de Tallinn, na Estônia, analisada pelo Strong Towns (2023), mostra que a gratuidade, sozinha, não aumenta a demanda. Dez anos depois, a participação no transporte público caiu e o uso do carro cresceu. A lição é clara: sem qualidade de serviço, redes que atendam aos destinos reais da população e políticas que tornem o automóvel menos conveniente, a tarifa zero não atinge seu objetivo central.

Esses exemplos reforçam que a discussão sobre tarifa zero pode ser útil não apenas para saber quem paga a conta, mas para discutir como ela é calculada — e se os incentivos estão alinhados para produzir eficiência, qualidade e atratividade. Além disso, é importante observar que a discussão é mais profunda e envolve temas como inclusão social, equidade, acessibilidade, direito à cidade, distribuição de renda e eficiência na gestão pública.

A derrota do projeto em Belo Horizonte não encerra o debate: pode ser o início de uma reflexão mais ampla sobre novos modelos de regulação. É uma oportunidade de repensar os incentivos do setor e reconstruir o desenho regulatório do transporte coletivo brasileiro.

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A política tarifária, gratuita ou não, precisa ser acompanhada de instrumentos que estimulem eficiência, inovação e qualidade, sob pena de apenas mudar a fonte de pagamento sem resolver as causas estruturais da ineficiência. Em última análise, a metáfora do almoço ajuda a enxergar melhor o desafio. De fato, não existe almoço grátis — alguém sempre paga a conta. Mas há uma segunda pergunta, também relevante: como se calcula o preço desse almoço?

Se insistirmos em pagar sem refletir sobre isso, não será apenas uma deficiência do serviço prestado, mas sobretudo da forma como o cálculo é estruturado. Porque, no fim, discutir tarifa zero sem enfrentar esse ponto é aceitar que o almoço siga sendo caro e ineficiente, sem garantir a qualidade necessária.

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