O problema da repartição dos ganhos com a preservação dos incentivos ao agente privado e apoio à manutenção do patrimônio público vem recebendo há tempos atenção do campo em expansão da economia dos incentivos e, nesse contexto, destaca-se a adoção mais ampliada do modelo de organização social previsto na Lei 9.637, de 15 de maio de 1998, fruto do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado de 1995, um modelo que frutificou em especial na política social, com destaque na presente reflexão para a política de cultura.
A adoção do modelo de organizações sociais teve grande adesão em aparelhos museais na esfera subnacional, como fonte de flexibilidade, e as vezes até de precariedade na gestão desses espaços, e que movimentam exposições com visitantes de domingo a domingo, ampliando o volume de transações e de riscos associados.
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O arranjo das organizações sociais é centrado na autonomia no ator privado, na sua flexibilidade, como elemento promotor de eficiência e inovação, em especial pelos aspectos concorrenciais, com uma governança pautada na contratualização com metas definidas, fugindo do efeito refém do modelo burocrático, pelo menos em tese.
A visão reformista traz a gestão de políticas públicas por um arranjo burocrático, com servidores e órgãos públicos, preso a uma ideia de conformidade, de rigidez, de hierarquia, mas pode se acrescentar também que esse arranjo preza pela perenidade, pela estabilidade, pelo saber acumulado, frente a volatilidade de um modelo de vínculos mais frágeis e mutáveis, como a organização social.
Nesse sentido, ao se olhar para um aparelho museal, dentro da política de cultura, este tem uma lógica própria e com uma contradição imanente. Uma ideia de preservação, de proteção de artefatos de valor histórico, artístico e cultural, insubstituíveis, exclusivos, e que precisam de uma estrutura protetiva que demanda custos de salvaguardas por vezes invisibilizados e pouco priorizados.
O incêndio do Museu Nacional da UFRJ em 2018, além de outros sinistros similares em aparelhos públicos e privados, privou a comunidade científica e a população de itens insubstituíveis, impossíveis de serem segurados, e que necessitam de proteção para os principais riscos, em especial a questão do furto e da perda por conta de incêndios, enchentes ou outros desastres naturais (BRAGA, 2020).
No contexto dessa contradição, ao mesmo tempo, para ter relevância política, para ter financiamento, o aparelho museal precisa ter inserção social, fazer exposições, eventos, mobilizando visitantes e turistas para ver seus artefatos, arrecadando pela via do ingresso, do patrocínio, de emendas orçamentárias e das isenções, recursos que atraem o interesse da gestão privada, mesmo que seja por meio de uma forma qualificada com traços de terceiro setor, como no caso das organizações sociais.
Essa tensão entre a proteção do patrimônio cultural e a necessidade de interação deste com a população permeia os aparelhos museais e dialoga com a tensão já trazida do modelo de organização social frente à gestão direta do governo, em que um preza a autonomia e a flexibilidade e o outro, a conformidade e a perenidade.
Tal questão indica que o modelo de organização social para aparelhos museais com patrimônios relevantes e insubstituíveis em termos culturais pode ter dificuldades em um arranjo mais flexível, volátil, pela necessidade de um mecanismo mais protetivo frente a riscos que são invisibilizados na governança em um aspecto mais concorrencial, mas permite, por outro lado, ganhos de divulgação e arrecadação pela sua flexibilidade.
Esse quadro pode ensejar a adoção de mecanismos complementares de gestão, nos quais o Estado concede à organização social a gestão apenas de parte das atividades no que se refere a questão da inserção na sociedade, mantendo um núcleo mais perene, estável e especializado de execução de tarefas, como um local de proteção e cuidado daqueles bens insubstituíveis, com mecanismos de governança permeados também pela sociedade, por meio de conselhos.
Parques federais tem adotado modelos que tem características similares a essa, com a gestão da visitação e passeios conduzidos por empresa privada e a gestão do parque e a sua preservação, com a estrutura estatal (MABONI ET AL, 2023), aliando essas duas lógicas, de disseminação e proteção de forma complementar no arranjo proposto.
Um modelo desses, no qual uma organização social, uma “associação de amigos do museu” ou congênere, assume contratualmente tarefas ligadas à divulgação e interação com a sociedade só funciona se parte da arrecadação reverter para o aprimoramento das atividades do museu, em especial no que se refere à conservação, na mitigação de riscos na prevenção de furtos e de incêndios, o que favorece a sinergia e a sustentabilidade desse modelo.
Por outro lado, a apropriação de parte dos ganhos gerados pela divulgação e interação com o público por parte do agente privado é essencial para preservar os incentivos deste. Assim, a questão se coloca em uma repartição dos ganhos que, por um lado, preserve os incentivos à eficiência por parte do agente privado; por outro, garanta em alguma medida os recursos necessários para a preservação do patrimônio museal a ser divulgado. Os ganhos potenciais resultam de economias de escala e especialização por parte do agente privado, que pode assim desenvolver suas atividades com menor custo e maior competência, especialmente se tiver desenvolvido competências em novas tecnologias digitais.
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Isto introduz a questão da regra de repartição dos ganhos derivados do arranjo, que apoie a preservação do patrimônio, sem comprometer os incentivos do agente privado. A ideia de um caixa único de arrecadação, nesse sentido, na qual a exploração legitima do patrimônio cultural não reverte diretamente para o aparelho público, pode estimular a exploração de forma ilegal, oculta, e que foge ao regramento do arranjo, desviando recursos para interesses legítimos e assumindo riscos desnecessários.
A discussão de arranjos na gestão de aparelhos públicos, mormente os culturais, é uma grande fronteira a ser explorada, fugindo da discussão de tipos ideais, um tanto superficial, para uma construção mais customizada e que respeite a lógica da política pública operacionalizada, seu contexto, seus riscos, suas salvaguardas e em especial, o cidadão que dela se beneficia.
BRAGA, Marcus Vinicius de Azevedo. A auditoria governamental, baseada em riscos, como instrumento auxiliar na proteção do patrimônio cultural. In: Sociedade Brasileira de Administração Pública. Anais do VII Encontro Brasileiro de Administração Pública, Brasília/DF, 11, 12 e 13 de novembro de 2020. Disponivel em: < https://www.researchgate.net/publication/345753381_A_auditoria_governamental_baseada_em_riscos_como_instrumento_auxiliar_na_protecao_do_patrimonio_cultural> Acesso em: 31 ago. 2025.
MABONI, Natalia de Oliveira; RODRIGUES, Camila Gonçalves de Oliveira; CANTO-SILVA, Celson Roberto. A condução de visitantes no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (GO): parcerias e efeitos na gestão da visitação. Revista Brasileira de Ecoturismo (RBEcotur), [S. l.], v. 16, n. 3, 2023. DOI: 10.34024/rbecotur.2023.v16.15168. Disponível em: https://periodicos.unifesp.br/index.php/ecoturismo/article/view/15168. Acesso em: 31 ago. 2025.