Se George Orwell fosse tributarista no Brasil de 2025, talvez adaptasse sua célebre máxima: “todos os reembolsos são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”. A provocação resume bem uma das recentes polêmicas desencadeadas pela Solução de Consulta Cosit 146/2025 da Receita Federal.
Nesse parecer, ao analisar as verbas pagas a conselheiros de conselhos profissionais, notadamente os chamados jetons (gratificações por participação em reuniões) e os reembolsos de despesas com veículos próprios (combustível, manutenção etc.), a Receita concluiu que tudo deve ser tratado como remuneração tributável.
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Em outras palavras, para a Receita Federal, tanto os jetons quanto os ressarcimentos de despesas com veículos passaram a integrar a base de cálculo do imposto de renda e das contribuições previdenciárias, pois seriam vantagens econômicas auferidas pelo conselheiro no exercício de seu cargo.
Neste artigo, focaremos especialmente na segunda parte dessa equação (a tributação dos reembolsos decorrentes da utilização de veículos) para demonstrar que tal interpretação é um deslize hermenêutico que ignora precedente vinculante do Supremo Tribunal Federal e subverte princípios de isonomia e segurança jurídica.
Inicialmente, é importante pontuar que a Solução de Consulta Cosit 146/2025 deixa explícito seu ponto de partida: por se tratar de conselheiros enquadrados como “segurados contribuintes individuais”, não há isenção previdenciária para ressarcimento de despesas pelo uso de veículo, “eis que não há previsão legal isentiva de contribuição sobre essa verba para segurado da categoria contribuinte individual”.
Assim, concluiu que, diferentemente do que ocorre no caso de um empregado celetista, para o qual, quando comprovados, as diárias e os reembolsos podem não integrar o salário-de-contribuição por força de lei, o conselheiro de um conselho profissional não teria amparo legal semelhante.
Em suma, na ausência de uma lei que expressamente diga o contrário, todo e qualquer reembolso de despesas decorrentes da utilização de veículo que seja pago ao conselheiro seria, aos olhos do fisco, verba remuneratória. É a velha lógica que favorece unicamente a arrecadação: o que não estiver explicitamente isento em lei está tributado por definição, mesmo que o pagamento efetuado tenha natureza indenizatória, ressarcitória, mercantil etc.
Ocorre que essa visão simplista esbarra num importante antecedente judicial. Ao julgar o Tema 1.223 de repercussão geral, em agosto de 2022, o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento diametralmente oposto no tocante às verbas de natureza não salarial pagas a trabalhadores autônomos. No caso concreto (RE 1.381.261/RS), discutia-se a base de cálculo do INSS de motoristas transportadores autônomos.
Por meio de decretos e portarias, a União havia passado a exigir contribuição previdenciária sobre o valor bruto do frete desses motoristas, englobando inclusive parcelas destinadas a custear despesas de viagem, combustível, pedágios etc., quando até então a lei contemplava apenas a remuneração efetiva do autônomo como base tributável.
Em decisão unânime, o STF declarou inconstitucionais as normas infralegais que majoraram essa base de cálculo, por violarem o princípio da estrita legalidade tributária. Nas palavras da corte, somente lei em sentido formal pode definir os elementos centrais do tributo – e, no caso dos motoristas, o decreto extrapolou a lei ao incluir no salário-de-contribuição montantes que não representavam ganho real do trabalhador.
Em consequência, restabeleceu-se a aplicação da Lei 8.212/91 em seus exatos termos, afastando a incidência de INSS sobre parcelas que não configurem remuneração do autônomo.
Qual é a relevância desse precedente do STF para os conselheiros de conselhos profissionais? Toda. A situação, guardadas as proporções, é análoga. Nos dois casos, estão em análise verbas pagas a contribuintes individuais. Entretanto, no caso analisado pelo Supremo, foi reconhecido que não seria possível a cobrança de contribuição previdenciária sobre valores recebidos pelo trabalhador que eram referentes a “outras parcelas, como combustível, seguros, desgaste do equipamento etc”, justamente porque não se trata de parcelas salariais que visam remunerar o serviço prestado.
E o que faz a Receita ao adotar o entendimento firmado na Solução de Consulta Cosit 146/2025? Viola o entendimento do STF, sob o fundamento de que somente com a expressa previsão em lei seria possível isentar ressarcimentos de despesas de veículos.
Se determinada parcela não tem natureza salarial, por representar mero ressarcimento de despesa necessária à atividade, não deve compor a base de cálculo da contribuição previdenciária, independentemente de quem a receba. Afinal, a tributação pressupõe que se trate de verba de natureza remuneratória.
No caso dos motoristas autônomos, ficou evidenciado que o valor gasto com combustível e manutenção do veículo próprio não poderia ser considerado parte integrante da remuneração, já que serve apenas para viabilizar o serviço a ser prestado. Mutatis mutandis, o mesmo vale para o conselheiro profissional que utilize veículo em diligências relacionadas a atividades do conselho.
Transformar essa recomposição de gastos em base de cálculo previdenciária equivale a cobrar contribuição sobre uma verba de natureza inquestionavelmente ressarcitória.
A interpretação fiscal, contudo, prefere ignorar a realidade material em nome do aumento da arrecadação. Como na fazenda dos animais de Orwell, a Receita decreta que alguns reembolsos são mais iguais que os outros: se a gasolina do carro é paga a um empregado, trata-se de indenização legítima, isenta de tributos; mas se paga a um conselheiro (contribuinte individual), vira remuneração e deve alimentar o Leão.
A isonomia tributária fica atropelada nessa estrada. Aristóteles nos ensinou que a justiça consiste em tratar igualmente os iguais – e há poucas coisas mais iguais do que duas pessoas percorrendo quilômetros a serviço de suas entidades e recebendo o mesmo ressarcimento de combustível.
Mesmo assim, o fisco escolheu tratá-las desigualmente, tributando apenas uma delas. Tal lógica cria um labirinto burocrático em que o conselheiro, para não ser tributado, precisaria negar o reembolso – ainda que esse reembolso não lhe traga benefício algum além de repor o que ele tirou do bolso. É o mundo invertido da burocracia, em que provar a boa-fé por meio de notas fiscais não exime o contribuinte do ônus; pelo contrário, o agrava.
Por fim, mas não menos importante, há o efeito nefasto dessa interpretação na segurança jurídica. A Receita Federal, ao desconsiderar frontalmente o conceito central do precedente do STF, semeia insegurança e confusão. Coloca o administrado diante de um dilema de trágica ironia: cumprir a orientação fazendária e recolher contribuição sobre o tipo de verba que o Supremo já disse ser indevida – ou seguir o entendimento do STF e arriscar-se a autuações e litígios contra o próprio fisco.
Em qualquer dos cenários, quem paga o pato é o contribuinte (seja na forma de tributo indevido, seja na forma de processos custosos). A promessa constitucional de um sistema tributário pautado pela legalidade e pela igualdade acaba soando vazia quando a autoridade fiscal não se curva nem mesmo a uma decisão vinculante da mais alta corte.
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Nesse contexto, também a confiança no Estado de Direito sai arranhada: que sinal se emite às empresas e profissionais quando nem mesmo a palavra final do STF garante um tratamento estável e isonômico?
Em conclusão, a Solução de Consulta Cosit 146/2025 revela-se um tiro pela culatra do ponto de vista jurídico. Ao insistir em tributar reembolsos de despesas de conselheiros como se salários fossem, a Receita Federal não apenas contraria frontalmente o entendimento consolidado no Tema 1.223 do STF, como também compromete a lógica da isonomia tributária e abala a segurança jurídica das relações entre fisco e contribuintes.
Espera-se, sinceramente, que tal posição seja revista, seja pela própria Administração Tributária, seja pelos tribunais que certamente serão provocados, reconduzindo-se o debate aos eixos do bom senso e da Constituição. Do contrário, continuaremos vivendo numa realidade digna de distopia: aquela em que “todos os contribuintes são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”.