A estabilidade no serviço público é um pilar do modelo burocrático brasileiro. Este modelo foi adotado pelo constituinte originário com o objetivo de profissionalizar a Administração Pública, erigindo barreiras institucionais contra as práticas endêmicas do patrimonialismo, do clientelismo e do uso da máquina estatal para fins privados ou partidários, que historicamente marcaram a formação do Estado brasileiro.
A PEC 32/2020 surge com o objetivo de alterar as regras sobre os servidores públicos. Um dos eixos centrais da reforma é a flexibilização do instituto da estabilidade, propondo uma reconfiguração a dos vínculos de trabalho no setor público.
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O presente texto analisa a relação entre os servidores, as políticas públicas e os riscos que a restrição da estabilidade representa para a continuidade de tais ações governamentais.
O conceito de política pública
Thomas Dye (1972) define política pública como “o que o governo escolhe fazer ou não fazer[1]”. As políticas públicas são o resultado de um processo de disputas e conflitos no qual diversos atores e instituições procuram inserir suas demandas na limitada agenda governamental. Configuram um processo de escolhas e de embates em busca de atenção estatal.[2]
A formulação e a implementação de políticas públicas seguem um processo lógico e estruturado: é o chamado “ciclo de políticas públicas”. Vejamos o ciclo:
a) Definição de agenda: É o processo de selecionar quais problemas da sociedade receberão a atenção do governo.
b) Formulação de políticas públicas: Nesta fase, são desenvolvidas e avaliadas diversas alternativas e cursos de ação para resolver os problemas que entraram na agenda.
c) Tomada de decisão: Aqui, indivíduos ou grupos autorizados escolhem uma das alternativas formuladas para ser implementada. É a fase em que se decide oficialmente por um curso de ação, que pode incluir a opção de não fazer nada (manter o status quo).
d) Implementação de políticas públicas: Considerada uma das etapas mais críticas e complexas, é o momento em que a política pública é colocada em prática e começa a produzir efeitos.
e) Avaliação de políticas públicas: Esta atividade finaliza o ciclo ao verificar se a política atingiu seus objetivos. A avaliação analisa o desempenho da política na prática e busca identificar pontos de melhoria, podendo influenciar um novo ciclo de políticas.
Superado o conceito e etapas, falemos sobre a relação entre os servidores públicas e as políticas públicas.
A relação entre o servidor público e as políticas públicas
Os servidores públicos são os agentes que personificam a ação governamental. São responsáveis por transformar decisões políticas em serviços concretos para a população.
Diferentemente dos governantes, que são transitórios, os servidores de carreira garantem a continuidade administrativa e a manutenção das políticas de Estado, acumulando conhecimento técnico e experiência sobre o funcionamento da máquina pública: a chamada memória institucional.
Essa expertise é crucial para a qualidade e eficácia das ações governamentais. Os servidores atuam em todas as fases do ciclo da política pública. Vejamos:
Definição de agenda e formulação: Fornecem dados e estudos técnicos que baseiam a criação de políticas.
Tomada de decisão: Auxiliam autoridades políticas com pareceres e informações para a escolha da melhor ação.
Implementação: Executam diretamente as políticas no contato com a população (médicos, professores, policiais etc.).
Avaliação: Coletam dados e monitoram indicadores para verificar a eficácia das políticas e propor aprimoramentos.
Em resumo, os servidores públicos participam em todo o ciclo das políticas públicas.
A estabilidade no serviço público e a PEC 32
A PEC 32 prevê que a estabilidade será restrita aos servidores de “carreiras típicas de Estado”, a serem definidas por lei complementar.
Vejamos a proposta: “Art. 41 da CRFB:. Adquire a estabilidade o servidor que, após o término do vínculo de experiência, permanecer por um ano em efetivo exercício em cargo típico de Estado, com desempenho satisfatório, na forma da lei”.
Maria Silva Z. Di Pietro leciona não haver, no Direito brasileiro, conceito legal de atividade típica de Estado. Aduz que, normalmente, são consideradas a defesa do país contra o inimigo externo, a segurança interna, a polícia, a intervenção, a justiça, a atividade jurídica do Estado, a diplomacia e a regulação.[3]
Vejamos que formular política não integra o conceito de atividade típica de estado. Então, caso a nova proposta de Emenda Constitucional seja aprovado, nos termos originalmente apresentados, os servidores que atuam na elaboração de políticas públicas não gozarão de estabilidade no serviço público.
Análise crítica dos riscos à consecução das políticas públicas com a PEC 32
A análise da PEC 32 revela que seus impactos atingem a capacidade do Estado de executar políticas públicas de forma eficaz e contínua. A proposta de reduzir a estabilidade apenas às carreiras típicas de Estado gera dois riscos para a governança: a descontinuidade das políticas públicas e a precarização do serviço, acompanhada da perda de memória institucional.
O primeiro risco, a descontinuidade, ocorre porque a estabilidade protege os servidores da pressão de governos de turno. Sem ela, os funcionários ficariam vulneráveis ao “aparelhamento” político, o que levaria à interrupção de projetos de longo prazo, como em educação e infraestrutura, a cada troca de gestão, desperdiçando recursos e conhecimento acumulado.
O segundo risco é a perda de memória institucional. A falta de estabilidade tornaria a carreira pública menos atraente para profissionais qualificados, causando uma “fuga de cérebros”. A consequente alta rotatividade impediria a construção de um conhecimento sólido e contínuo, fazendo com que o Estado perdesse sua expertise, repetisse erros e sofresse uma queda na qualidade de serviços essenciais.
Perspectivas para o futuro do serviço público no Brasil
A existência de um corpo de servidores públicos profissionais e estáveis está diretamente ligada à capacidade do Estado de sustentar políticas públicas robustas e imunes a interesses particularistas. A estabilidade é uma ferramenta institucional essencial para a governança democrática, assegurando que a Administração Pública sirva à sociedade e ao Estado.
Embora a busca por maior eficiência na gestão pública seja um objetivo necessário, a PEC 32 propõe uma solução que ataca o pilar de sustentação do sistema.
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Ao flexibilizar a estabilidade, a proposta arrisca gerar problemas mais graves, como a reintrodução do patrimonialismo, a descontinuidade administrativa e a instrumentalização política da máquina pública. Em vez de modernizar, a medida ameaça um retrocesso a práticas clientelistas que a Constituição de 1988 buscou superar.
O debate sobre a PEC 32 representa uma escolha sobre o modelo de Estado para o futuro do Brasil. De um lado, um modelo que aposta na desregulamentação, arriscando a estabilidade institucional. De outro, um que reafirma a necessidade de uma burocracia profissional e autônoma, capaz de planejar o longo prazo e garantir o desenvolvimento com equidade. Cabe à sociedade refletir e escolher qual caminho seguir.
[1] SOUZA, Celina. Políticas Públicas: Conceitos, Tipologias e Sub-Áreas. Trabalho elaborado para a Fundação Luís Eduardo Magalhães, em dezembro de 2002.Pág. 04.
[2] https://www.jornalmantiqueira.com.br/2024/09/02/politica-publica-e-suas-etapas/
[3] HIROSE, Regina Tamami. Carreiras Típicas De Estado: Desafios E Avanços Na Prevenção E No Combate À Corrupção. 1.ED.. Belo Horizonte: Fórum, 2019. Disponível em: https://www.forumconhecimento.com.br/livro/L2843. Acesso em: 2 set. 2025. Prefácio elaborado por Maria Sylvia Zanella Di Pietro.