Protocolado no fim de 2023, de autoria da deputada federal Coronel Fernanda (PL-MT), e recentemente aprovado na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados, o PL 6093/2023 poderia ser considerado apenas mais um dentre as diversas proposições em tramitação no Congresso Nacional que tratam da demarcação de Terras Indígenas (TIs).
No entanto, distingue-se por carregar um forte viés contrário aos direitos dos povos indígenas, apresentado sob a roupagem de legalidade ou de suposta “imparcialidade e eficiência”.
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O PL 6093/23 tem como objetivo “regulamentar o art. 231 da Constituição Federal, dispondo sobre o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas”, mas traz uma série de problemas em seu texto que, se aprovado e colocado em prática, acabará inviabilizando as demarcações no país.
Na análise recente feita por meio de Nota Técnica, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e o Instituto Socioambiental (ISA) destacaram os riscos profundos que a proposta representa aos direitos constitucionais dos povos indígenas. Embora o texto alegue buscar maior eficiência e imparcialidade nos processos de demarcação de Terras Indígenas, na verdade, o PL 6093/23 inviabiliza cerca de 98% dos territórios atualmente em tramitação, criando barreiras burocráticas adicionais, ampliando a interferência política e favorecendo a judicialização dos procedimentos.
Um dos pontos mais graves identificados na análise é a substituição do decreto presidencial de homologação por medida provisória, sujeita à apreciação do Congresso Nacional. Na prática, isso significa que a demarcação só se conclui se o Congresso Nacional aprovar um Projeto de Lei de Conversão.
Durante esse processo, o Congresso poderá alterar os limites territoriais definidos na MP, rejeitar integralmente a criação da Terra Indígena ou simplesmente não votar a matéria, mantendo títulos e posses privadas sobre áreas tradicionalmente ocupadas. Ao transferir a palavra final ao Congresso Nacional, a proposta subverte o modelo constitucional vigente, aumenta a interferência política e sujeita direitos originários previstos no art. 231 da Constituição à vontade de maiorias parlamentares, em violação à jurisprudência do STF.
Nesse sentido, embora o STF tenha afirmado, ao julgar o RE Xokleng (RE 1.017.365) com repercussão geral, que os direitos territoriais indígenas são originários e que a demarcação tem caráter meramente declaratório, o PL busca ainda consolidar em lei a tese do “marco temporal”, exigindo a comprovação de ocupação tradicional em 5 de outubro de 1988.
Essa interpretação já foi expressamente rejeitada pela corte. A proximidade dos fatos reforça o embate: em setembro de 2023 o STF declarou a inconstitucionalidade da tese; em outubro o Congresso aprovou a Lei 14.701/23, a chamada Lei do Marco Temporal; e, em dezembro, foi protocolado o PL 6.093/23. A sequência revela a tentativa do Congresso de afirmar-se como instância final sobre o tema, em confronto direto com a decisão judicial.
Além disso, a proposição legislativa retira da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), órgão técnico especializado, a coordenação do processo de demarcação, transferindo-a ao Ministério da Justiça, com a participação de outros ministérios, inclusive aqueles historicamente contrários aos direitos indígenas, a exemplo do Ministério da Agricultura e Pecuária.
Outro aspecto preocupante evidenciado pela nota técnica é a alteração da composição do Grupo Técnico responsável pelos estudos, que passaria a incluir representantes de estados, municípios e até de proprietários interessados em impedir a demarcação, admitindo-se a possibilidade de qualquer interessado participar dos trabalhos de campo na comunidade indígena.
Tal configuração, segundo a análise, cria um ambiente de confronto, compromete a credibilidade dos estudos técnicos e fomenta disputas judiciais. Soma-se a isso a exigência de dotação orçamentária prévia, a realização de audiências públicas em todos os municípios envolvidos, a possibilidade de suspensão do processo em caso de conflitos ou invasões e a vedação à ampliação de áreas já demarcadas.
Por fim, a ausência de Consulta Livre, Prévia e Informada, prevista na Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário, foi apontada como uma violação grave dos compromissos internacionais assumidos pelo país. A nota enfatiza que as TIs, com cerca de 98% de cobertura vegetal preservada, são fundamentais para a regulação do clima, a proteção da biodiversidade e a segurança hídrica e alimentar do Brasil. Nesse sentido, conclui que o PL 6093 não apenas fragiliza os direitos dos povos indígenas, mas compromete também o futuro socioambiental do país, enfraquecendo políticas essenciais de preservação e colocando em risco compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro.
Na justificativa apresentada no PL 6093, destacam-se expressões como “conciliação entre os interesses envolvidos”, “racionalizar o procedimento demarcatório”, “em prol da segurança jurídica” e a afirmação de que se trata de uma medida “justa, constitucional e que contribuirá para a pacificação social”.
Esses argumentos reforçam uma retórica recorrente em iniciativas legislativas que, sob a alegação de imparcialidade, buscam restringir direitos constitucionais dos povos indígenas. A proposta de conciliação apresentada pelo texto ignora a profunda assimetria de poder entre setores econômicos (como o agronegócio, madeireiras e mineradoras) e os povos indígenas, que enfrentam desigualdades históricas e estruturais.
Ao mesmo tempo, a invocação da segurança jurídica mostra-se contraditória, uma vez que o PL impõe condicionantes excessivas ao processo de demarcação, legitimando a omissão do Estado em cumprir sua obrigação constitucional e perpetuando situações de insegurança e violência nos territórios.
Às vésperas de sediar a COP30, quando o Brasil será protagonista na agenda climática global, o Parlamento brasileiro adota uma postura contraditória. Em vez de avançar em políticas de proteção socioambiental, aprova o Novo Marco de Licenciamento Ambiental, que fragiliza salvaguardas históricas, mantém em curso um Grupo de Trabalho no Senado sobre mineração em TIs e continua a legislar de forma sistemática contra os povos indígenas e os biomas do país.
Esse quadro se revela ainda mais grave diante das crises socioambientais recentes: o Rio Grande do Sul foi devastado por uma enchentes, a Caatinga sofre acelerado processo de desertificação, o Pantanal e o Cerrado enfrentam queimadas recorrentes e já virou o “novo normal” ver a Amazônia atravessar longos e alarmantes períodos de estiagem.
Paradoxalmente, são justamente os povos indígenas, guardiões históricos desses biomas e peças-chave para a preservação ambiental e climática, que continuam a ser alvo de ataques legislativos, obrigados a defender seus direitos territoriais básicos contra um Parlamento que, embora afirme representar o povo, não escuta nem protege efetivamente a sociedade brasileira.
O PL 6093 não é apenas mais uma proposição em tramitação: é símbolo de um Parlamento que, sistematicamente, escolhe legislar contra os povos indígenas, os biomas e a democracia. A mensagem transmitida é clara: interesses econômicos imediatos prevalecem sobre direitos constitucionais, compromissos internacionais e o futuro socioambiental do país.
Se o Congresso insiste em não ouvir os povos indígenas, cabe afirmar com firmeza: nós, povos indígenas do Brasil, estamos atentos a cada decisão e a cada passo desse processo legislativo. Continuaremos resistindo, denunciando e mobilizando forças para defender nossos direitos, nossas terras e nossas vidas. O Parlamento pode escolher ignorar nossas vozes, mas jamais conseguirá silenciá-las.