A Câmara dos Deputados aprovou em primeiro turno o texto principal da chamada PEC da Blindagem, uma Proposta de Emenda à Constituição para literalmente “blindar” parlamentares de processos criminais. O texto dispõe que, entre outras medidas, a abertura de ação penal contra parlamentar dependeria de autorização prévia, votação secreta e maioria absoluta da Câmara ou do Senado.
Na verdade, esse tema não é novo. Trata-se do restabelecimento de prerrogativas que já estavam presentes na Constituição de 1988, mas que foram modificadas em razão de violações de direitos humanos, sobretudo após o caso Márcia Barbosa. Observa-se que a referida PEC representa um descumprimento direto da condenação imposta ao Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
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Em primeiro lugar devemos esclarecer que a imunidade parlamentar é uma garantia de independência do Poder Legislativo em seu conjunto e de seus membros para que o parlamentar não sofra perseguição política, mas, em nenhuma hipótese pode ser um privilégio pessoal de um parlamentar[1].
No Brasil, a Constituição[2] previa a imunidade formal estabelecendo que os membros do Congresso Nacional (aplica-se também a deputados estaduais e distritais), desde a expedição do diploma, não poderiam ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua casa.
No entanto, essa imunidade parlamentar não pode se transformar em um verdadeiro mecanismo de impunibilidade[3], e foi exatamente isso que ocorreu no Brasil durante o período em que vigorou a exigência de licença prévia da Casa Legislativa para o processamento criminal de parlamentares. Entre 1988 e 2001, no âmbito do Supremo Tribunal Federal mais de 200 pedidos de abertura de processo criminal dependeram de autorização de uma das Casas do Congresso. No entanto, apenas um parlamentar teve a imunidade suspensa e foi processado[4].
A Emenda Constitucional 35 de 2001 alterou a redação do § 3º do artigo 53 da Constituição para constar o seguinte texto: “Recebida a denúncia contra o Senador ou Deputado, por crime ocorrido após a diplomação, o Supremo Tribunal Federal dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação”.
Ou seja, hoje, o STF apenas dará ciência à Casa respectiva que poderá sustar o andamento do processo, sem que ocorra a prescrição, não se exigindo mais nenhum tipo de autorização para instauração de um processo criminal. Na verdade, o direito não é estático e não é “dado”, mas resultado de lutas históricas. A imunidade formal parlamentar, que exigia autorização das Casas Legislativas para o processamento criminal, acabou por representar a perpetuação de impunibilidade. Foi graças à luta pelos direitos humanos, especialmente pelo caso Márcia Barbosa de Souza, que essa mudança constitucional se consolidou.
Márcia Barbosa de Souza, natural de Cajazeiras (PB), era uma estudante afrodescendente de 20 anos de idade quando foi brutalmente assassinada, em 1998, por ordem do então deputado estadual Aércio Pereira de Lima. O laudo do perito médico-legal indicou que Márcia foi agredida antes de morrer e, como causa da morte, foi determinada asfixia por sufocamento, resultante de uma ação mecânica.
Desde o início das investigações não havia dúvidas que Márcia tinha estado com o referido deputado na noite anterior e a conhecia desde 1997. A sociedade e a defesa do então deputado adotaram uma postura misógina, preconceituosa e criminosa em relação à jovem Márcia com alegações de “prostituição, overdose e suposto suicídio”[5].
A corte destacou que, nessa época, a violência contra a mulher no Brasil era um problema estrutural e cultural. Apesar dos avanços da Lei Maria da Penha, a corte ressaltou que o Brasil ainda enfrenta “falta de pessoal especializado em casos de violência doméstica e familiar”[6].
Na verdade, o Brasil testemunhou o uso e a justificativa da imunidade parlamentar para acobertar a impunibilidade de um assassinato brutal. A exigência a autorização das Casas Legislativas para a instauração de processo criminal levou a Assembleia Legislativa rejeitava todos os pedidos do Tribunal de Justiça.
O Ministério Público denunciou o deputado Aércio pelos crimes de homicídio duplamente qualificado e ocultação de cadáver. No entanto, para instauração da Ação Penal era necessária a autorização da Assembleia. Como resultado, a Assembleia Legislativa da Paraíba rejeitou o pedido do Tribunal de Justiça da Paraíba para indicar o processo penal por duas vezes: em 1998, na sua primeira eleição, e em 1999, na reeleição.
A Corte Interamericana destacou que a Assembleia Legislativa “não analisou ou fez nenhuma ponderação entre um eventual fumus persecutionis da acusação do Ministério Público e o direito de acesso à justiça dos familiares de Márcia Barbosa de Souza e a exigência de investigar com devida diligência”. Como resultado da rejeição de autorizações à Assembleia Legislativa os familiares de Márcia Barbosa foram privados de forma arbitrária de acesso à justiça e de impunibilidade do homicídio.
Com a alteração da norma constitucional com a Emenda Constitucional 35 de 2001, o Tribunal de Justiça pôde enviar a Ação Penal para a Procuradoria Geral de Justiça para que se pronunciasse sobre a continuidade do caso. Em 2003, o juiz relator do caso consultou o Tribunal Regional Eleitoral da Paraíba que informou que o senhor Aércio não havia sido eleito.
Sendo assim, o caso foi submetido à primeira instância, em razão da ausência de prerrogativa de foro. Em 2005, foi proferida sentença de pronúncia que decidiu que Aércio deveria ser submetido ao Tribunal do Júri, “em virtude de que existiam indícios suficientes para determinar a autoria do delito de homicídio qualificado por motivo fútil e mediante asfixia, e por ocultação de cadáver”[7].
No entanto, em 2007, antes do recurso de Aércio contra a sentença fosse julgado, ele faleceu. Ou seja, após 9 anos do assassinato o deputado nunca foi condenado e morreu de infarto, antes mesmo que fosse responsabilizado. Assim, foi extinta a punibilidade e o caso foi arquivado.
O que se observa é que a imunidade parlamentar serviu de impunibilidade e de revitimização dos familiares. Márcia foi revitimizada mesmo após a morte. Enquanto o deputado usufruía de imunidade formal parlamentar sobre o assassinato violento de uma mulher, em nada relacionado ao exercício de suas funções, Márcia e seus familiares nunca tiveram justiça.
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Na sentença que condenou o Brasil, a Corte IDH foi categórica ao afirmar que “o arcabouço jurídico na época dos fatos tornava ilusória a possibilidade de levantar a imunidade parlamentar e dava margem para decisões arbitrárias e corporativistas por parte do órgão legislativo”[8].
Ora, esse arcabouço jurídico vigente à época de Márcia Barbosa é exatamente o que a chamada PEC da Blindagem quer resgatar. Certamente caso seja aprovada, veremos, mais uma vez, a consolidação da impunibilidade, especialmente quanto aos crimes não vinculados ao cargo, como os casos de violência contra a mulher.
Nesse sentido, é urgente que o Brasil não só retroceda como cumpra as sentenças da Corte IDH. Essa obrigação se estende a todos os Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) e órgãos. É necessário que se realize o chamado “controle de convencionalidade”, que consiste na obrigação do Estado de adequar o ordenamento jurídico interno ao corpus iuris interamericano, neste caso, à sentença da Corte IDH referente ao caso Márcia Barbosa, que condenou o Brasil.
[1] Corte IDH. Caso Barbosa de Souza y otros Vs. Brasil. Excepciones preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 7 de septiembre de 2021. Serie C No. 435.
[2] No artigo 53 da Constituição.
[3] Termo que aprendi com o ilustre professor Nilo Batista que critica a expressão “impunidade”.
[4] Ver: CONGRESSO EM FOCO.PEC da Blindagem retoma regra que só abriu processo contra um deputado. Disponível em https://www.congressoemfoco.com.br/noticia/112023/pec-da-blindagem-retoma-regra-que-so-abriu-processo-contra-um-deputado. Acesso em 17 set. 2025.
[5] Corte IDH. Caso Barbosa de Souza y otros Vs. Brasil. Excepciones preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 7 de septiembre de 2021. Serie C No. 435, parágrafo 71.
[6] Ibid., parágrafo 56.
[7] Corte IDH. Caso Barbosa de Souza y otros Vs. Brasil. Excepciones preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 7 de septiembre de 2021. Serie C No. 435, parágrafo 78.
[8] Ibid., parágrafo 113.