A transformação digital das contratações públicas brasileiras segue avançando. Exemplo disso é a criação da plataforma Contrata+Brasil, instituída pela Instrução Normativa SEGES/MGI 52/2025, com o objetivo de aproximar a Administração Pública e os pequenos negócios por meio de solução tecnológica centralizada e padronizada.
A proposta é promissora. Pretende-se desburocratizar contratações de menor valor – até R$ 80 mil – por meio de solução tecnológica que centraliza e padroniza, por parte do órgão central e administrador, os objetos a serem contratados, o que pode facilitar a vida de pequenos entes públicos – especialmente municipais – sem pessoal técnico especializado.
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Contudo, embora o normativo preveja a participação de microempreendedores individuais (MEIs), microempresas (MEs) e empresas de pequeno porte (EPPs), a prática revela outro cenário.
A operacionalização inicial do programa contempla exclusivamente os MEIs, conforme divulgado no site oficial da plataforma. O resultado é um efeito prático de reserva de mercado de fato, ainda que não formalizada juridicamente ou autorizada legalmente.
Esse recorte inicial da política pública – ainda que justificado como estratégia de implementação escalonada – impõe uma dúvida relevante: seria juridicamente possível reservar um canal federal de contratações apenas aos MEIs, em detrimento das demais MPEs também protegidas pelo ordenamento?
Do ponto de vista jurídico, a segmentação de políticas públicas deve respeitar o princípio da isonomia e os critérios legais de tratamento favorecido, sem criar distinções não previstas no ordenamento.
Ainda que a execução inicial seja transitória, é preciso cautela para que essa diferenciação não se torne permanente, desbordando os limites traçados pela LC 123/2006 e pela Lei 14.133/2021. A resposta, como se vê, exige vigilância jurídica constante, sob pena de erosão dos pilares legais que sustentam a política nacional de apoio aos pequenos negócios.
A Lei Complementar 123/2006, em seu art. 48, trata do favorecimento às MEs e EPPs, sem estabelecer qualquer hierarquia entre os beneficiários. A Lei 14.133/2021, por sua vez, impõe que a atuação administrativa seja promotora do desenvolvimento nacional sustentável (art. 11, inciso IV), assegurando tratamento preferencial a todos os pequenos negócios.
Dessa forma, embora não haja vedação à implantação escalonada de sistemas, não parece legítima a institucionalização, ainda que transitória, de política pública que favoreça um grupo – MEIs – em detrimento dos demais – MEs e EPPs – igualmente protegidos pelo ordenamento.
Outro aspecto relevante é a utilização da plataforma como meio para a adoção de procedimentos auxiliares da nova Lei de Licitações. A Instrução Normativa prevê que as contratações sejam operacionalizadas por credenciamento ou sistema de registro de preços, dentre outros previstos no art. 78 da Lei 14.133/2021. Tal estratégia pode ampliar a previsibilidade e simplificar aquisições de bens e serviços padronizados, reforçando a lógica de digitalização com responsabilidade.
Vale destacar, ainda, que a plataforma Contrata+Brasil não se limita à esfera federal. Seu uso é admitido por órgãos e entidades estaduais, municipais, além do Sistema S, o que amplia seus potenciais efeitos sobre a economia pública nacional. Nesse cenário, é ainda mais urgente garantir que os critérios de acesso e participação estejam em harmonia com o princípio federativo e com os fundamentos da livre concorrência e do tratamento isonômico.
É possível aqui estabelecer diálogo com reflexão anterior publicada neste JOTA sobre os riscos de um sistema de compras expresso que, ao privilegiar a celeridade, possa comprometer a legalidade e a isonomia. Da mesma forma, a plataforma Contrata+Brasil exige vigilância constante, especialmente se sua implementação contrariar, na prática, comandos legais e constitucionais.
A digitalização é bem-vinda, sobretudo se aliada à simplificação responsável. Mas isso exige vigilância quanto à adequação jurídica e equidade na execução das políticas públicas. A reserva de mercado fática – ainda que transitoriamente operada – pode tensionar os pilares que sustentam a política nacional de apoio aos pequenos negócios.
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Assim, mesmo diante dos ganhos operacionais que o Contrata+Brasil pode oferecer, é inevitável retomar a indagação: seria legítimo restringir, mesmo que temporariamente, o uso de uma política pública nacional apenas aos MEIs, excluindo as MEs e EPPs? Tal segmentação encontra amparo nas normas em vigor? Ou estaria extrapolando os limites da legalidade?
Eis o debate que se impõe: as compras públicas digitais não podem ignorar os marcos normativos que asseguram isonomia, legalidade e desenvolvimento sustentável. A resposta não é trivial – e exige atenção redobrada por parte de gestores, operadores do Direito e da sociedade.