IA no INPI: entre eficiência e governança

Em um cenário em que a inteligência artificial está cada vez mais presente no cotidiano, sua aplicação nos escritórios de propriedade intelectual não é apenas uma tendência, mas uma revolução em curso. A IA está reformulando processos tradicionais, trazendo desafios e oportunidades para os profissionais da área.

Esse é o cerne da minha pesquisa, iniciada em 2018, que teve sua primeira publicação em 2022, em um artigo (GUERRANTE, 2022) sobre os impactos da IA nos escritórios de propriedade intelectual, uma reflexão originada da minha experiência na Missão Diplomática do Brasil junto à OMC e na Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), em Genebra.

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A continuidade dessa pesquisa foi recentemente publicada em um livro coletivo de autoras mulheres da área de IA, intitulado O uso da inteligência artificial e a inclusão digital nos serviços públicos. Nesse livro, consegui unir três grandes paixões: a propriedade intelectual, a IA e o tripé diversidade, equidade e inclusão (DEI).

Dando seguimento às minhas reflexões sobre o tema, publiquei, em 2025, outro artigo de opinião (GUERRANTE, 2025), focado no futuro do trabalho dos examinadores no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), a autarquia federal onde atuo há 23 anos.

Podemos dizer que 2025 marca uma nova fase da inteligência artificial no INPI, não apenas no sentido da implementação de ferramentas de IA para a celeridade dos processos de análise, mas também na construção de normativos internos que garantem maior transparência e governança.

Nos últimos seis meses, a autarquia formalizou três documentos centrais: a Política de Uso de Inteligência Artificial, a Instrução de Trabalho para Uso de Ferramentas de IA no Exame de Patentes e o Manual de Uso de IA Generativa no Exame de Patentes. Esses documentos transformaram o uso de IA de um projeto-piloto em uma política institucional clara e regulamentada.

A Política de IA do INPI estabelece princípios fundamentais como respeito aos direitos humanos, explicabilidade, transparência, não discriminação, publicidade e responsabilidade. Ela reforça que a IA deve servir de suporte ao trabalho das pessoas envolvidas com exame de ativos de propriedade industrial, não substituindo o julgamento humano, reconhecendo o servidor como o decisor final.

Este entendimento está alinhado com as tendências internacionais de governança de IA, como o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial 2024–2028 e o AI Act europeu, que também preveem supervisão humana significativa em decisões assistidas por IA.

A Instrução de Trabalho para Uso de Ferramentas de IA no Exame de Patentes, por sua vez, detalha rigorosamente como quem examina deve empregar a IA generativa nas principais etapas do exame, como a busca por anterioridades, a sugestão de classificações (IPC/CPC) e a elaboração de pareceres técnicos.

As diretrizes exigem a estruturação cuidadosa de prompts, a guarda obrigatória dos registros para auditoria e treinamento, e a proibição da inserção de dados sigilosos ou pessoais sem anonimização, conforme as exigências da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Além disso, o uso da IA deve ser explicitamente informado ao usuário final, seja nos relatórios de busca ou nos pareceres técnicos, garantindo a publicidade e a transparência dos atos administrativos.

O Manual de Uso de IA Generativa no Exame de Patentes reforça que a IA não é um substituto da análise humana, mas uma ferramenta de apoio essencial. Ele orienta a quem examina patentes a aplicar o método socrático na validação das respostas, revisar as sugestões de termos de busca ou classificações e tomar cuidado com as chamadas “alucinações” — respostas imprecisas ou falsas geradas pela IA de maneira plausível. O manual enfatiza a necessidade de revisão constante e detalha o processo de configuração das ferramentas para garantir sua conformidade com as normas institucionais.

Essa estrutura normativa, portanto, passará a alterar o trabalho diário dos examinadores no INPI. A IA deixa de ser uma ferramenta experimental para se tornar uma etapa regulamentada do processo de exame. As pessoas encarregadas do exame devem planejar os prompts com rigor, documentar o uso da IA, validar criticamente as sugestões e garantir a conformidade com as diretrizes de proteção de dados e governança. Com isso, o INPI não apenas padroniza os procedimentos, mas também reforça a autonomia técnica de quem trabalha no órgao, devendo zelar qualidade e legalidade dos resultados.

Ao mesmo tempo, esse avanço traz desafios importantes. A eficácia dessa política dependerá de um programa consistente de capacitação dos examinadores, que já está em andamento. Esse programa visa capacitar os profissionais para formular bons prompts, identificar vieses, corrigir alucinações e aproveitar ao máximo as ferramentas de IA.

Além disso, será necessário um rigor na governança dos dados gerados, uma vez que o registro de prompts e resultados cria uma base valiosa que deve ser protegida contra acessos indevidos. Há ainda o desafio de promover uma mudança cultural no INPI, superando resistências e mostrando que a IA não diminui o trabalho técnico, mas o qualifica ao reduzir tarefas repetitivas e liberar tempo para análises mais profundas.

As oportunidades, por outro lado, são igualmente claras. Ferramentas de IA podem tornar as buscas por anterioridades mais eficientes e abrangentes, melhorar a redação dos pareceres técnicos, reduzir disparidades entre áreas técnicas e agilizar os prazos. Ao combinar autonomia técnica e governança, o INPI caminha para a modernização dos modelos de exame, mais transparentes e eficientes, capazes de oferecer respostas de alta qualidade em um ambiente de crescente complexidade tecnológica.

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Em síntese, o futuro do trabalho no INPI com IA não é um futuro sem examinadores, mas um futuro com profissionais mais bem preparados, melhor equipados e com processos mais transparentes. A tríade formada pela Política de IA, a Instrução de Trabalho e o Manual de Uso estabelece uma base sólida para que o uso de IA seja seguro, ético e alinhado ao interesse público, transformando o desafio tecnológico em uma oportunidade real de modernização institucional.

Na data de submissão deste artigo de opinião para publicação, o INPI publicou mais uma peça do quebra-cabeça regulatório, a consulta pública nº 3/2025, disponível para contribuições até 17 de outubro de 2025. A consulta tem como objetivo coletar manifestações sobre a minuta das Diretrizes de Exame de Pedidos de Patente Relacionados à Inteligência Artificial. Esse será o tema do meu próximo artigo de opinião sobre IA, mas, para aqueles que tiverem curiosidade, publiquei em 2023, com colegas da PI, um artigo acadêmico sobre diretrizes de exame de patentes envolvendo IA (Guerra Moura et al., 2023).

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O texto reflete a opinião da autora e não a institucional

BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Dispõe sobre a proteção de dados pessoais e altera a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014 (Marco Civil da Internet). Diário Oficial da República Federativa do Brasil: Poder Executivo, Brasília, DF, 14 ago. 2018. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm. Acesso em: 7 ago. 2025.

GUERRA MOURA E SILVA, Rodrigo; GUIMARÃES VASCONCELLOS, Alexandre; DI SABATO GUERRANTE, Rafaela; FONSECA, Eduardo; MONTEIRO, Luis; SALLES FILHO, Sergio. A proteção patentária de invenções geradas e assistidas pela inteligência artificial: uma abordagem das diretrizes de exame de mérito. In: XX Congreso Latino-Iberoamericano de Gestión Tecnológica y de la Innovación (ALTEC), 2023, Paraná, Argentina. Anais… [s.l.]: ALTEC, set. 2023. 10 p. Disponível em: https://repositorio.altecasociacion.org/bitstream/handle/20.500.13048/2101/A%20prote%C3%A7%C3%A3o%20patent%C3%A1ria%20de%20inven%C3%A7%C3%B5es%20geradas%20e%20assistidas%20pela%20intelig%C3%AAncia.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 10 ago. 2025.

GUERRANTE, R. Inteligência artificial e seus impactos nos escritórios de propriedade intelectual. Consultor Jurídico (ConJur), 25 jul. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jul-25/rafaela-guerrante-ia-escritorios-propriedade-intelectual/. Acesso em: 22 ago. 2025.

GUERRANTE, R. Propriedade intelectual na era da IA: ferramentas, desafios e colaborações. In: MURTA, C. (Org.). O uso da inteligência artificial e a inclusão digital nos serviços públicos. 1. ed. São Paulo: Bookba, 2024.

GUERRANTE, R. O futuro do trabalho no INPI: o examinador na era da inteligência artificial. JOTA, 6 mar. 2025. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-futuro-do-trabalho-no-inpi-o-examinador-na-era-da-inteligencia-artificial. Acesso em: 1 ago. 2025.

INSTITUTO NACIONAL DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL (INPI). Política de Uso de Inteligência Artificial no âmbito do INPI. Portaria INPI/PR nº 052, de 24 de dezembro de 2024. Link oficial.

INSTITUTO NACIONAL DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL (INPI). Instrução de Trabalho CPAT–IT–0003 (rev.0.0) – Utilização de Ferramentas de Inteligência Artificial em Atividades de Exame de Pedidos de Patente. Portaria/INPI/DIRPA nº 05, de 30 de maio de 2025.

INSTITUTO NACIONAL DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL (INPI). Manual de Uso de IA Generativa no Exame de Patentes. 2025. Portaria/INPI/DIRPA nº 05, de 30 de maio de 2025.

MINISTÉRIO DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO (MCTI); CENTRO DE GESTÃO E ESTUDOS ESTRATÉGICOS (CGEE). IA para o bem de todos: Plano Brasileiro de Inteligência Artificial. Brasília, DF: MCTI; CGEE, 2025. 104 p. ISBN 978-65-5775-097-1. Disponível em: https://www.gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-o-mcti/transformacaodigital/arquivosinteligenciaartificial/plano-brasileiro-de-inteligencia-artificial-pbia-_vf.pdf. Acesso em: 2 ago. 2025.

UNIÃO EUROPEIA. Regulation (EU) 2024/1689 of the European Parliament and of the Council of 13 June 2024 laying down harmonised rules on artificial intelligence and amending Regulations … (Artificial Intelligence Act). Official Journal of the European Union, L 1689, 12 jul. 2024. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=OJ:L_202401689. Acesso em: 3 ago. 2025.

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