A narrativa dominante nas negociações climáticas internacionais é moldada por países e blocos que concentram tecnologias consideradas “chaves” para o futuro — baterias, semicondutores e infraestrutura de recarga, por exemplo. Nessa lógica, a bioenergia, onde o Brasil detém clara vantagem comparativa, ainda é vista ainda como opção periférica e não eixo estruturante.
A Agência Internacional de Energia estima que a demanda global por biocombustíveis deve dobrar até 2030, com destaque para o papel do Brasil na oferta de etanol, biodiesel, HVO, biometano e SAF. Mesmo assim, em fóruns multilaterais, o tema, por vezes, ocupa um espaço secundário. É um contraste desconfortável: enquanto os números apontam para crescimento acelerado, a política internacional parece pouco disposta a abrir espaço para as novas rotas tecnológicas de bioenergia como vetor central da descarbonização.
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As razões para tanto extrapolam o cenário doméstico. União Europeia e Estados Unidos têm concentrado seus pacotes de estímulo em setores onde detêm clara vantagem tecnológica — veículos elétricos, hidrogênio verde e armazenamento em larga escala. Nesse contexto, exigências de rastreabilidade e padrões de certificação ambiental, quando aplicados de forma assimétrica, acabam criando entraves adicionais para os produtos brasileiros, operando, na prática, como filtros de acesso a mercados sob o argumento da regulação verde.
Há também desafios internos que contribuem para esse descompasso. Apesar de o Brasil contar com um arcabouço normativo em expansão — que inclui a Lei dos Combustíveis do Futuro, a iminente regulamentação dos Certificados de Garantia de Origem do Biometano (CGOBs) e programas de incentivo setoriais com metas obrigatórias —, o avanço regulatório ainda se mostra fragmentado.
Muitas vezes, o ritmo das metas anunciadas não acompanha as condições logísticas do país, nem enfrenta de forma estruturada os gargalos persistentes de infraestrutura de escoamento, o que limita a efetividade das políticas.
Do ponto de vista de financiamento, a COP30 também deve ser palco para novos alinhamentos. Relatórios recentes mostram que, mesmo com a expansão do mercado de títulos rotulados (verde, social, sustentável e afins), as grandes instituições financeiras ainda canalizam somas expressivas para fósseis — cerca de US$ 869 bilhões em 2024, o que pressiona o custo de capital para soluções de baixo carbono.
Isso evidencia a necessidade de regras que internalizem riscos climáticos e priorizem resultados de mitigação mensuráveis, inclusive de bioenergia sustentável, especialmente considerando as características de interiorização das soluções brasileiras e plantas produtoras de médio porte.
No Brasil, o mix de instrumentos de financiamento sustentável já existe — como os títulos soberanos sustentáveis, as linhas do BNDES (gestor do Fundo Amazônia e do Fundo Clima), as debêntures de infraestrutura e outros mecanismos setoriais —, mas ainda carece de escala e alinhamento com padrões internacionais de taxonomia e disclosure.
Esse canal de funding tende a ganhar tração à medida que projetos de baixo carbono se tornem mais “bancáveis” e passem a competir em escala global, fortalecendo a posição do Brasil como provedor estratégico de soluções de descarbonização.
A iminente publicação da Taxonomia Sustentável Brasileira (TSB) representa um marco regulatório decisivo para o alinhamento do sistema financeiro nacional às metas de transição climática e de desenvolvimento sustentável. Ao estabelecer critérios claros, objetivos e cientificamente fundamentados para definir quais atividades econômicas podem ser consideradas sustentáveis, a TSB não apenas aproxima o Brasil das mais de 50 jurisdições que já avançaram na criação de suas próprias taxonomias, mas também cria um instrumento essencial para direcionar capital privado e público em escala.
Trata-se de iniciativa com potencial de redefinir padrões de financiamento, crédito e seguros, estimulando transparência, integridade e previsibilidade regulatória, além de posicionar o país de forma estratégica no cenário internacional de finanças sustentáveis. Se implementada de maneira robusta e consistente, a TSB poderá acelerar a reorientação gradual de atividades intensivas em carbono para modelos produtivos regenerativos, garantindo competitividade econômica e segurança jurídica na trajetória de descarbonização brasileira.
Outra peça-chave é o novo Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE), já estabelecido em lei. A implementação será faseada, com etapas de MRV obrigatórias a partir de 2026 e operacionalização completa em até cinco anos. Importa destacar que o desenho prevê a interoperabilidade de créditos de carbono do mercado voluntário para uso regulado (CRVEs), o que pode criar ponte entre fluxos internacionais e projetos domésticos — inclusive de bioenergia — desde que as regras de integridade sejam robustas.
Nesse arranjo, outros ativos ambientais também são vistos como a moeda da transição. Os Certificados de Garantia de Origem do Biometano (CGOB), cuja regulamentação via decreto está em finalização, podem dar rastreabilidade e separar o atributo energético do atributo ambiental do biometano, aumentando liquidez e interoperabilidade com padrões externos.
O ponto de atenção é evitar lacunas que reduziriam a aceitação internacional e o uso corporativo em inventários no âmbito do mercado voluntário. O decreto e a futura regulamentação precisam de amarrações claras de mensuração, verificação e reporte para que o CGOB seja um ativo elegível em financiamentos e estruturação de projetos.
O mesmo racional vale para cadeias de SAF e de diesel verde (HVO). O marco legal criou programas específicos e previu metas obrigatórias de redução de emissões na aviação doméstica a partir de 2027, o que depende de regras claras para certificação, elegibilidade de matérias-primas e instrumentos de mercado (como book-and-claim) a fim de capturar prêmios de descarbonização em mercados externos.
Nesse contexto, avanços técnicos recentes no âmbito da OACI — como o reconhecimento dos benefícios ambientais do multicropping — tendem a melhorar os fatores de emissão e, portanto, a precificação de créditos/atributos associados ao SAF brasileiro, tornando contratos de offtake mais financiáveis.
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A agenda de florestas também entra como ativo na COP30. O Brasil vem articulando o Tropical Forests Forever Facility (TFFF) para pagamentos previsíveis e baseados em desempenho a países com florestas tropicais, com meta de mobilização de capital público e privado. Movimentos recentes de apoio internacional indicam tração política e financeira para que o TFFF seja um dos entregáveis da COP30 e sirva de referência para financiamento baseado na natureza.
Nesse cenário, o desafio do Brasil não é apenas reforçar a ideia de que tem vocação para a bioenergia, mas mostrar, na prática, que pode convertê-la em influência e valor. Isso passa por dar previsibilidade regulatória, fortalecer instituições e alinhar-se a padrões globais de financiamento e sustentabilidade. Só assim a bioenergia deixará de ser uma promessa repetida e se tornará um instrumento real de competitividade e de inserção internacional.