Representantes de vítimas dos casos conhecidos como Barrios Altos e La Cantuta, no Peru, pediram à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) que tome medidas contra uma lei nacional aprovada para anistiar os responsáveis.
Trata-se de dois massacres cometidos pelo Grupo Colina, um esquadrão paramilitar, ligado ao Exército, que atuava para identificar e eliminar opositores do então presidente, Alberto Fujimori (1990-2000).
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O caso Barrios Altos ocorreu em 3 de novembro de 1991, quando seis indivíduos armados e encapuzados invadiram uma casa, em um bairro popular em Lima, e ordenaram que os presentes se deitassem no chão. Eles foram alvejados indiscriminadamente, suspeitos de “terrorismo”. Quinze pessoas morreram – incluindo uma criança de oito anos – e quatro ficaram gravemente feridas.
“La Cantuta” era uma referência à Universidade Nacional de Educação Enrique Guzmán La Valle, na capital peruana, onde foram sequestrados nove estudantes e um professor, em 18 de julho de 1992. Eles foram torturados e fuzilados. Os corpos de dois deles foram encontrados um ano depois, esquartejados e carbonizados, em sepulturas clandestinas.
Em sentenças proferidas em 2001 e 2006, respectivamente, a Corte IDH determinou que o Peru é responsável pelas violações do direito à vida e à integridade pessoal (Barrios Altos) e pelo desparecimento forçado e execução extrajudicial dos estudantes e do professor (La Cantuta).
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O Estado reconheceu a responsabilidade internacional pelas violações, mas não cumpriu com a obrigação ordenada pelo tribunal, de investigar, processar e punir os responsáveis pelas graves violações cometidas em ambos os casos.
Lei de anistia
Contrariamente, o Congresso peruano aprovou o Projeto de Lei 6951/2023-CR, em 11 de junho deste ano, que “concede anistia a membros das Forças Armadas, da Polícia Nacional do Peru e funcionários do Estado que não receberam sentença transitada em julgado por atos relacionados ao combate ao terrorismo no período de 1980 a 2000″. A lei abarca os membros do Grupo Colina envolvido nos massacres.
Em resposta à aprovação, a presidente da Corte IDH, Nancy Hernández López, requereu, em medida provisória de 24 de julho, que o Estado do Peru suspendesse a tramitação e a aplicação jurídica da lei, “até que a Corte Interamericana de Direitos Humanos tenha todos os elementos e pronunciamentos necessários”.
O Executivo, no entanto, promulgou a lei. Para os representantes das vítimas e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), foi um “claro desacato” à Corte IDH.
“É uma nova tentativa do Estado peruano de restaurar a impunidade e desconhecer os efeitos vinculantes da sentença de Barrios Altos e La Cantuta. Em claro desacato, o Congresso e o Poder Executivo promulgaram a norma, que hoje se encontra em vigor. De acordo com dados do Ministério Público, sua aplicação pode afetar mais 550 vítimas e familiares, incluindo as vítimas dos casos Barrios Altos e La Cantuta”, disse Gloria Cano, da Associação Pro Direitos Humanos do Peru (APRODEH).
Segundo ela, a lei tem efeito revitimizante. “Essa lei não só ameaça impedir o acesso à justiça, mas gera um profundo impacto revitimizante àqueles que, depois de décadas de luta, veem novamente em risco a verdade e a justiça alcançadas. Este é o contexto de algo que representa uma nova ameaça aos direitos às vítimas”, pontuou.
Apelo de familiares
Gladys Rubina, irmã de uma das vítimas do caso Barrios Altos, fez um apelo aos juízes. “Já se passaram 34 anos dos fatos e não deixamos de lutar um só dia para conhecer a verdade, conseguir justiça e defender a memória das vítimas. Peço, senhores juízes, que não deixem a impunidade prosperar. Se tiver que seguir lutando, o faremos. Não descansaremos até que todos os responsáveis paguem por suas responsabilidades. Não é rancor, é justiça”.
Em razão da anistia aos envolvidos nos casos Barrios Altos e La Cantuta, os representantes das vítimas solicitaram à Corte que apresente um relatório ao Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos, relatando “a situação de reiterado desacato e absoluta falta de proteção sofrida pelas vítimas e beneficiários das medidas provisórias”.
Posição do Estado
Cesar Fernando Pastor, representante do Estado, defendeu que os militares e policiais são vítimas de uma “narrativa”.
“Não podemos admitir a narrativa e o pensamento único que se pretende impor, que pressupõe o escrutínio eterno dos membros das Forças Armadas, dos policiais e dos membros dos comitês de autodefesa. Muitos desses cidadãos, militares e policiais, morreram nos últimos anos, privados de sua liberdade ou com restrições, sem sequer receber uma sentença condenatória ou absolutória. Isso, honoráveis juízes, consideramos que viola o direito a ser julgado em um prazo razoável. Não se pode submeter nenhum cidadão peruano a um juízo que dure 20, 30 anos”, reclamou.
O representante afirmou que a Corte não pode interferir indiscriminadamente em leis internas dos países americanos. “Consideramos que, dentro dos compromissos que o Estado peruano assumiu em 1977, ao ratificar a Convenção Americana, e em 1981, ao reconhecer a competência contenciosa da Corte, está a obrigação de adotar dispositivos de direito interno para garantir direitos dos cidadãos. Mas isso não significa que a Corte IDH pode orientar a legislação interna dos países. Nesse sentido, consideramos que a Corte não pode ordenar a paralisação do trâmite de processos legislativos”, disse.
Ao encerrar a audiência, a presidente Nancy Hernández López ressaltou que as medidas provisórias emitidas por ela em junho ainda estão vigentes – ou seja, o Estado ainda deve providenciar a suspensão dos efeitos da lei, até que a Corte se pronuncie sobre quais medidas adotará definitivamente em relação aos casos. Não há prazo para tal decisão.