Em 29 de julho de 2021, o então presidente Jair Bolsonaro apresentou uma live nas dependências do Palácio do Planalto para expor as fraudes nas urnas eletrônicas. Fora do habitual, convidou jornalistas para assistirem pessoalmente às declarações, mas ponderou que eles não poderiam fazer perguntas. Nascia naquele momento o que a Procuradoria-Geral da República (PGR) demarcou como o ponto inicial da tentativa de golpe no Brasil, e que se estenderia até os atos de 8 de janeiro de 2023, em que prédios públicos foram depredados por um grupo de pessoas inconformadas com o resultado das eleições.
Quatro anos depois, já fora do cargo, o ex-presidente está no banco dos réus e será julgado a partir de terça-feira (2/9) no Supremo Tribunal Federal (STF) – sua presença física ainda não esteja definida. O ex-presidente participou de várias etapas da instrução processual em aparições estratégicas.
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Embora nos bastidores do Judiciário e da política, a condenação de Bolsonaro esteja posta, outras variáveis estão em jogo – desde as penais, como a dosimetria da pena, colegiado dos recursos e local de uma eventual prisão até a validade de soluções fora dos autos, como asilo diplomático e político e alterações na legislação brasileira.
O voto do relator da ação penal, Alexandre de Moraes, pode dar um direcionamento. A expectativa é que Moraes vote no dia 9 de setembro, após o término das sustentações orais. No tribunal, a data é bem vista para evitar efervescências sociais durante as manifestações previstas para o 7 de setembro. Moraes deve dividir o voto entre preliminares, mérito e cálculo da pena.
Aliados mais ativos de Bolsonaro na trama golpista também estão entre os réus neste julgamento sem precedentes na história recente do país. Ao todo são 8 réus, homens fortes no entorno do ex-presidente durante a sua administração, como os generais Braga Netto e Augusto Heleno e o almirante Almir Garnier. Homens de confiança como o ex-ajudante de ordens Mauro Cid e ex-ministros, como o da Defesa Paulo Sérgio Nogueira e o da Justiça Anderson Torres, além do ex-chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) Alexandre Ramagem.
Dosimetria da pena
No cenário de condenação que se desenha, interlocutores do STF acreditam que o cálculo da pena será um dos pontos mais discutidos entre os ministros. A partir dos pedidos da PGR, Bolsonaro, por exemplo, poderia ser condenado a 43 anos de prisão.
Contudo, os ministros devem discutir se cabe somar as penas dos crimes de golpe de Estado e atentado às instituições democráticas, conforme o proposto pela acusação. Há a ponderação de que o crime de golpe de Estado é o crime fim e o atentado, um crime meio, portanto, um absorve o outro, diminuindo a pena. Durante o julgamento do oferecimento da denúncia, ministros como Luiz Fux, Flávio Dino e Cristiano Zanin sinalizaram que essa questão precisava ser melhor analisada e discutida.
“Uma tese defensiva, que eu acho plausível, é a hipótese de imputação de apenas um dos crimes contra o Estado democrático, que é o crime de golpe de Estado, e não os dois em concurso material, porque a narrativa defendida pela PGR é a imputação desses dois delitos em concurso. No meu entender, essa é uma questão que realmente está em disputa no julgamento”, analisa Taiguara Libano, professor de direto penal do Ibmec.
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Na avaliação de especialistas, há pouca margem de vitória para a defesa de Bolsonaro em argumentos como a competência do STF para a ação penal, a competência da 1ª Turma, a imparcialidade do ministro Alexandre de Moraes, anulação da delação de Mauro Cid, o cerceamento de defesa e o “document dump” – prática de juntada de documentos em grande volume para prejudicar a outra parte. Esses temas já foram analisados e superados no julgamento da denúncia.
De uma maneira geral, a leitura nos bastidores da Corte é que, no decorrer da instrução processual, os interrogatórios e as provas trazidas aos autos ajudaram pouco Bolsonaro. Embora tenha negado o intuito golpista, o ex-presidente afirmou que não enxugou qualquer minuta golpista e que no documento havia apenas “considerandos” com a condição do Brasil. Ainda fez piada com o ministro Alexandre de Moraes sobre uma futura chapa nas eleições de 2026, embora esteja inelegível pela Justiça Eleitoral.
Os depoimentos dos ex-chefes das Forças Armadas prejudicaram o ex-presidente. O brigadeiro Baptista Júnior, comandante da Força Aérea Brasileira (FAB), disse a Moraes que Bolsonaro segurou a divulgação do relatório das Forças Armadas sobre as urnas eletrônicas quando soube que não havia indício de fraude. Ainda, confirmou as reuniões de intuito golpista no Palácio do Alvorada, falou de uma minuta de golpe dentro de um plástico apresentada pelo ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira aos comandantes e disse que o almirante Almir Garnier dos Santos colocou as tropas à disposição de Bolsonaro.
Local de uma eventual prisão
Na hipótese de condenação, outra dúvida posta é sobre onde Bolsonaro cumpriria a pena de prisão. Por ser um ex-presidente da República e militar, há dúvida se seria em presídio comum, na sede da Polícia Federal ou em um quartel-general.
O professor Taiguara Libano ressalta a singularidade do caso: um ex-presidente e um ex-presidente que também teve uma carreira militar. “Pode ser que, diante desse contexto peculiar, o Supremo defina excepcionalmente o local mais adequado para cumprir essa pena. E aí realmente não tem como fazer uma previsão nesse sentido. O fato é que, como se trata de um caso excepcionalíssimo, isso fugirá à regra. A regra é que o executivo estadual defina.”
O professor de direito penal da FGV Thiago Bottino entende que não há motivos para prisão em cela especial, portanto, neste caso, Bolsonaro poderia ser enviado a uma prisão comum, como a Papuda, no Distrito Federal. “Pena definitiva se cumpre em presídio. Aí vão perguntar: ‘Ah, mas e o Lula?’ A prisão do Lula não era uma pena definitiva. Não tinha transitado em julgado. Nesse caso, não vai ser uma prisão especial porque não é uma prisão cautelar”, argumenta.
Quanto aos recursos, tanto Bottino quanto Libano defendem que eventuais embargos infringentes devam ser analisados no plenário para manter o duplo grau de jurisdição. Contudo, nos casos em que réus do 8 de janeiro fizeram tal pedido, ele foi negado.
O PL, partido do ex-presidente Bolsonaro, acionou o STF para que ex-presidentes fossem julgados em plenário em ações penais, mas a ação não andou porque o relator, ministro Cristiano Zanin, entendeu que não se admite o uso do controle concentrado de constitucionalidade para discussão de supostas violações a direitos subjetivos ou como possibilidade de recursos.
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No outro lado da Praça dos Três Poderes, congressistas bolsonaristas tentam a anistia ou qualquer tipo de benefício que possa livrar Bolsonaro da condenação e reconduzí-lo para a vida política. Mas ainda têm encontrado obstáculos. Especialistas em direito penal consultados pelo JOTA defendem que, caso aprovada, a lei de anistia abrangeria o ex-presidente por ser uma lei mais benéfica ao réu.
Intervenção internacional
A inédita sanção a ministros da Suprema Corte brasileira pelo julgamento de Bolsonaro e o tarifaço imposto ao Brasil deixaram a situação mais tensa. E o que era um julgamento virou uma crise diplomática com apelo à soberania nacional.
No meio desse julgamento que transborda a atuação nos tribunais, a Polícia Federal afirma que há risco de fuga de Bolsonaro para embaixadas de países alinhados ideologicamente ao ex-presidente, como Estados Unidos, Hungria e Argentina. Agora, o ex-presidente, que estava em prisão domiciliar por outra investigação, é monitorado 24 horas.
Na avaliação de Evandro Carvalho, professor de direito internacional da Fundação Getulio Vargas (FGV), o pedido de asilo diplomático pode trazer problemas na relação entre países, pois a nação que o receber estará se posicionando contra as instituições brasileiras. “Cria um problema diplomático com o Brasil. Porque na realidade não existe uma perseguição política do Bolsonaro. Então, a rigor, não é porque ele acha que existe uma perseguição política, que ela exista”, afirma. “Claro que a Justiça pode ter os seus excessos, mas eles devem ser resolvidos dentro do sistema brasileiro”, complementa.
E acrescenta: “Para o Bolsonaro, os Estados Unidos é uma opção porque o [presidente Donald] Trump já formou partido favorável a ele na perspectiva de uma perseguição política. Quer dizer, o Trump já aceitou assumir o desgaste com o Brasil”.
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O professor de direito internacional do Ibmec Thiago Romero também pondera que um eventual asilo em uma embaixada pode ser visto como mau uso da imunidade diplomática, visto que, em sua avaliação, o ex-presidente não está sendo perseguido pelo governo, mas, sim, está passando pelo devido processo legal com garantias judiciais. “Caso ele consiga um asilo, a autoridade brasileira poderia muito bem rechaçar esse asilo dentro das cortes internacionais e dentro das organizações ações internacionais.”
Romero explica que o carro da embaixada também é inviolável, mas a polícia brasileira poderia fazer um bloqueio e paralisar uma via, por exemplo, até o ex-presidente deixar o veículo. O especialista também esclarece que, caso Bolsonaro consiga chegar a uma embaixada, ele pode requerer um salvo-conduto ao governo brasileiro para se asilar fora do país, e cabe ao presidente da República conceder ou não o benefício.