Soberania com improviso fiscal e mais uma gambiarra econômica

As últimas semanas têm sido bastante agitadas para a economia, em função das consequências e repercussão da crise política que está sendo enfrentada, das medidas tomadas pelo governo americano e reação das autoridades brasileiras. Quem fica prejudicado, evidentemente, é sempre a população, dados os reflexos diretos nas finanças públicas nacionais. “Quando o mar briga com o rochedo, quem sofre é o marisco” (provérbio popular).

As “sobretaxas” impostas pelos Estados Unidos a produtos brasileiros se concretizaram em medidas efetivas, e provocaram resposta do governo federal, que se materializou no alcunhado Plano Brasil Soberano (MP 1.309/2025).

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Apresentado como salvaguarda ao setor produtivo e ao emprego, o plano combina crédito público, desonerações fiscais e estímulos via compras governamentais.

O que se constata, no entanto, é que o “plano” (que na verdade não é um plano, no sentido de documento ou instrumento de planejamento, mas sim um conjunto de atos voltados a solucionar um problema imediato), além de ser improvisado – o que é bastante óbvio, e em parte compreensível, dada a urgência das medidas –, inclui medidas que trazem fortes indícios de retorno da “contabilidade criativa” que tanto estrago trouxe às contas públicas na década de 2010.

E mostra que a “administração-bombeiro” continua sendo a técnica mais difundida e utilizada pela administração pública para resolver problemas imediatos, “apagando incêndios” e deixando a conta a ser paga no futuro pelos que vierem a ser atingidos pelos prejuízos de soluções precárias.

Constata-se ser um conjunto ainda provisório com diversos dispositivos pendentes de regulamentação. Parte do setor empresarial também manifesta preocupação com a falta de um maior esforço de negociação[1] e a ênfase do plano em medidas temporárias e paliativas, em detrimento de soluções diplomáticas duradouras[2].

A principal medida do plano é a concessão de crédito subsidiado no valor de R$ 30 bilhões, com reforço a fundos garantidores. A novidade que preocupa é que parte desse montante, segundo integrantes do governo, será classificada como despesa fora do limite do novo arcabouço fiscal[3].  A reiterada criação de exceções ao limite global de despesas da LC 200 enfraquece o próprio instrumento que visa disciplinar o crescimento do gasto público e assegurar sua compatibilidade com o equilíbrio fiscal.

Ainda que a exclusão de determinadas despesas seja juridicamente possível em hipóteses específicas, sua ampliação progressiva pode gerar efeitos deletérios sobre a credibilidade do arcabouço e sua função de âncora fiscal. A vinculação do crédito à manutenção de empregos é positiva, mas não substitui a necessidade de avaliação de impacto fiscal e de compatibilidade com os limites da dívida pública (arts. 29 a 32 da LRF).

O plano prevê o diferimento de tributos federais e a reestruturação do Reintegra[4], com alíquotas ampliadas e validade até 2026. Ainda que pendentes de detalhamento infralegal, essas medidas devem observar o art. 14 da LRF, que exige estimativas de impacto orçamentário-financeiro e compensações equivalentes, sem o que se está diante de violação de princípios de responsabilidade na gestão fiscal.

Posterga-se a arrecadação ou renuncia-se a ela para aliviar setores estratégicos, mas sem neutralizar o impacto na receita pública, disfarçando o efeito real sobre o déficit e, assim, ocultando os efeitos concretos sobre as contas públicas. E a delegação de competências ao Executivo para definir condições por meio de portarias ou atos normativos secundários compromete a segurança jurídica, além de fragilizar o controle legislativo e social da política fiscal.

O plano autoriza a União, estados e municípios a adquirir produtos afetados pelas sobretaxas no âmbito de programas sociais. Embora formulada como ação emergencial, essa medida conflita com a lógica da neutralidade das contratações públicas.

Além disso, a ausência de critérios técnicos claros e de metodologia de alocação orçamentária fere o princípio da eficiência e dificulta a fiscalização e a transparência. A prática de uso político das compras públicas como instrumento compensatório pode gerar ineficiências alocativas e comprometer a legitimidade dos gastos.

A previsão de utilização do Fundo de Garantia à Exportação (FGE) e do BNDES como canais de financiamento é ainda uma forma de tirar do orçamento direto valores que, em essência, representam apoio público (com garantias da União e risco fiscal implícito).  Esse expediente reduz a transparência sobre o real custo fiscal, desviando para fundos e bancos públicos despesas que, de acordo com princípios de responsabilidade fiscal, deveriam estar explícitas na lei orçamentária.

O Plano Brasil Soberano, como se pode constatar, em vários momentos escapa das amarras da Lei de Responsabilidade Fiscal e do novo arcabouço fiscal ao criar gastos fora da meta, ampliar benefícios sem compensação e usar fundos e bancos públicos como válvula de escape. Um arranjo que evidencia contabilidade criativa, lembrando expedientes usados em crises anteriores para maquiar resultados e minar a disciplina fiscal.[5]

A tentativa de reagir à imposição de tarifas não autoriza a adoção de medidas que contornem os pilares do Direito Financeiro. A exclusão de parte dos gastos do arcabouço fiscal, somada à ausência de estimativas detalhadas de impacto e à delegação ampla de regulamentação, fragiliza os instrumentos de planejamento e controle.

O princípio do equilíbrio orçamentário (art. 1º, §1º, LRF) e o planejamento plurianual (art. 165, §1º, CF/88) não são meros requisitos formais: são mecanismos constitucionais que garantem a sustentabilidade da ação pública no tempo. Além disso, o risco de se converter medidas transitórias em obrigações permanentes — sem previsão orçamentária — fere o art. 15 da LRF, que proíbe a criação de despesa obrigatória de caráter continuado sem demonstração de sua viabilidade financeira.

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O Plano Brasil Soberano ainda é um conjunto de intenções, condicionado à regulamentação futura e à compatibilidade com os marcos legais e fiscais vigentes. A exclusão de parte dos recursos das metas de resultado e dos limites do arcabouço fiscal exige fundamentação técnica, transparência e contornos bem definidos, sob pena de descredibilizar o instrumento e gerar precedentes para novas exceções.

Sob a ótica do Direito Financeiro, improvisos sem base normativa sólida representam ameaças à governança orçamentária, à responsabilidade e ao equilíbrio fiscal. O enfrentamento de choques externos deve ocorrer dentro dos limites legais, com planejamento, prudência e respeito aos princípios de responsabilidade fiscal.

Respeitar as normas de Direito Financeiro, mais do que uma exigência do universo jurídico, é também fundamental para o adequado funcionamento da economia, sinalizando aos agentes econômicos e sociais que um ordenamento jurídico sólido, consistente e respeitado é um elemento fundamental para o desenvolvimento seguro e consistente do país. E uma demonstração de exercício da soberania mais eficiente do que “bravatas” que pouco ajudam. Mais do que nunca, é necessário reafirmar que o combate à volatilidade econômica não pode gerar instabilidade jurídica.

[1] https://www.cnnbrasil.com.br/blogs/caio-junqueira/economia/macroeconomia/empresarios-responsabilizam-governo-por-interrupcao-de-negociacao-com-trump/

[2] https://gauchazh.clicrbs.com.br/economia/noticia/2025/08/ainda-no-aguardo-do-plano-de-contingencia-ao-tarifaco-entidades-consideram-medidas-do-governo-importantes-mas-paliativas-cme7p5srz00fg014lyel8hphe.html

[3] https://www.poder360.com.br/poder-economia/governo-deixara-r-95-bi-do-plano-do-tarifaco-fora-da-meta-de-primario/

[4] Regime Especial de Reintegração de Valores Tributários para as Empresas Exportadoras, programa de incentivo fiscal voltado a exportadores brasileiros, criado pelo governo federal (Lei nº 12.546/2011, depois regulamentado por decretos posteriores) com o objetivo de devolver parcial ou integralmente aos exportadores tributos residuais da cadeia produtiva que não foram eliminados pelos mecanismos tradicionais de desoneração, como créditos de PIS/Cofins ou IPI.

[5] “Tanto a capitalização de fundos quanto o Reintegra, que juntos somam R$ 9,5 bilhões, teriam impacto no resultado primário, mas foram tirados da contabilidade da meta. Com esse valor, o montante excluído da meta de primário alcança R$ 388 bilhões, dos quais R$ 192 bi são precatórios acumulados de gestões anteriores e R$ 145 bilhões da PEC da Transição” (Plano Brasil Soberano: a análise de pesquisadores do FGV-IBRE – https://ibre.fgv.br/blog-da-conjuntura-economica/artigos/plano-brasil-soberano-analise-de-pesquisadores-do-fgv-ibre).

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