Em tempos em que se discute como combater o greenwashing, alguns estados da Amazônia Legal inauguram uma nova forma de punir as poucas práticas empresariais que, de fato, têm um compromisso com a proteção do meio ambiente e o combate ao desmatamento. É o caso da iniciativa multissetorial da moratória da soja, em que as empresas se comprometem a não comprar soja proveniente de fazendas com áreas desmatadas na Amazônia após 22 de julho de 2008.
A Lei 12.709/2024 de Mato Grosso e suas correspondentes em Rondônia (Lei 5.837/2024) e Maranhão (Lei 12.475/2025) lançaram mão do uso do sistema tributário para desestimular empresas a assumirem compromissos voluntários com a proteção do meio ambiente.
Conheça o JOTA PRO Tributos, plataforma de monitoramento tributário para empresas e escritórios com decisões e movimentações do Carf, STJ e STF
Essas normas expressamente proíbem a concessão de incentivos fiscais pelo Poder Público às empresas que participem de acordos, tratados ou quaisquer outras formas de compromissos que imponham restrições à expansão da atividade agropecuária em áreas não protegidas por legislação ambiental específica.
Na (falta de) lógica dessas normas, se uma empresa decide, voluntariamente, ter a sua cadeia de suprimentos livre de desmatamento (legal e ilegal), ela não está apta a receber benefícios fiscais. Agora, aquela empresa que, por vezes, nem se esforça em checar se o produto que compra é proveniente de desmatamento ilegal e que faz o mínimo necessário do seu dever de devida diligência, esta sim cumpre os requisitos para ser premiada pelo poder público com incentivos fiscais.
Ora, em plena crise climática, em ano de COP30 no coração da Amazônia e à luz da Constituição Federal, gera perplexidade que esse seja o comportamento empresarial a ser estimulado por atores políticos dos estados amazônicos.
A Constituição, no artigo 225, impõe ao poder público e à coletividade – incluído o setor empresarial – o dever de defender e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações. Não se trata de uma faculdade, de uma escolha discricionária de ir ou não nesta direção. Como bem entendeu o STF nas ações do Pacote Verde (ADPF 743, 745 e 857), a proteção do meio ambiente não é uma opção política, mas um dever imposto pela Constituição.
Não há dúvidas de que isso se estende também ao dever do poder público de promover a proteção do meio ambiente nas práticas empresariais e no sistema tributário. De acordo com o artigo 170, inciso VI, da Constituição, a ordem econômica deve observar a defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação.
A Emenda Constitucional 132/2023 incluiu o parágrafo terceiro ao artigo 145 da Constituição, segundo o qual o Sistema Tributário Nacional deve observar o princípio da defesa do meio ambiente. Fica evidente que qualquer desenho de incentivo fiscal que desfavoreça práticas benéficas ao meio ambiente extrapola os limites da discricionariedade estatal, sendo, portanto, inconstitucional.
Com base nesses fundamentos, está em análise no STF a apreciação da inconstitucionalidade dessas normas que atacam compromissos ambientais voluntários pela proteção do meio ambiente (ADI 7774, ADI 7775, ADI 7823). Em decisão liminar no final de 2024, na ADI 7774, sobre a norma de Mato Grosso, o ministro relator Flávio Dino havia decidido pela suspensão dos efeitos da lei, argumentando que havia “indícios de vício de desvio de finalidade pois utiliza norma tributária como instrumento punitivo”.
Contudo, nova decisão liminar do relator, de abril de 2025, reconsiderou a decisão anterior e, apesar de reconhecer que “a Moratória da Soja fortaleceu a credibilidade do Brasil no cumprimento de compromissos internacionais de proteção ambiental, reforçando o papel do país como fornecedor de produtos agropecuários sustentáveis no mercado global”, concluiu que “o poder público não é obrigado a conceder novos benefícios a empresas que resolvam exigir o que a lei não exige”.[1]
De fato, o poder público não é obrigado a conceder incentivos fiscais para nenhuma empresa de nenhum setor. Mas indagamos: o poder público está autorizado a discriminar negativamente na política tributária apenas empresas que voluntariamente adotam compromissos ambientais mais ambiciosos?
Receba de graça todas as sextas-feiras um resumo da semana tributária no seu email
Fazendo um paralelo com outros tipos de compromissos voluntários: o poder público poderia escolher não conceder benefícios fiscais apenas para instituições de ensino que adotem políticas de diversidade?
A nosso ver, não só não pode pela Constituição, como há um risco enorme na validação desse entendimento. Qualquer precedente que autorize o uso inconstitucional do sistema tributário, seja para prejudicar o meio ambiente ou quaisquer outros direitos fundamentais, pode colocar em risco direitos conquistados a duras penas pelos cidadãos e pela democracia brasileira.
O que precisamos é que mais empresas façam mais pelo meio ambiente – e isso não significa fazer o mínimo, que é cumprir a lei – e se inspirem em iniciativas bem-sucedidas como a moratória da soja, que objetiva o desmatamento zero.
Precisamos que os Três Poderes façam mais para cumprir com o seu dever de proteção do meio ambiente, como se comprometeram no Pacto pela Transformação Ecológica. Precisamos que governos estaduais implementem políticas e promovam práticas mais sustentáveis do setor empresarial. Precisamos de uma sociedade mais engajada e vigilante na proteção do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Em um contexto tão desafiador para a proteção do meio ambiente, que tem demandado dos entes federados, do STF e da sociedade civil o acompanhamento da implementação e dos resultados das políticas de combate ao desmatamento, de redução dos gases de efeito estufa, do avanço na governança e transparência de dados ambientais, entre outros, devemos sempre premiar quem faz mais pelo meio ambiente, nunca quem faz menos.
A moratória da soja é um acordo multissetorial, firmado voluntariamente há 18 anos, e reconhecido como um instrumento fundamental para combater o desmatamento, proteger o meio ambiente e mitigar os efeitos das mudanças climáticas.
Os resultados positivos desse acordo são inegáveis, seja para o enfrentamento do desmatamento, seja para o avanço sustentável da produção de soja. Entre 2009 e 2022, os municípios monitorados pela moratória tiveram uma redução de 69% no desmatamento, enquanto a área plantada de soja no bioma Amazônia cresceu 344%.[2]
As iniciativas legislativas mencionadas, contudo, colocam em risco a continuidade desse acordo num contexto em que o Brasil teve escalada recente nos dados de desmatamento e perdas de grandes áreas em virtude de incêndios, ao passo que cientistas alertam que a Amazônia caminha para o “ponto de não retorno”.
Vale destacar que o desmatamento é o principal fator de emissões de gases de efeito estufa (GEE) no Brasil. Segundo o SEEG, a alteração no uso da terra representa 46% do total de emissões brasileiras, que alcançou um total de emissão de 1,04 GtCO2 brutas em 2023.[3] Portanto, frear o desmatamento é fundamental para o cumprimento das metas climáticas brasileiras.
Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA
Importante lembrar, ademais, que o desenvolvimento econômico depende dos recursos naturais disponíveis em um meio ambiente sadio. Buscar o desenvolvimento sustentável não é apenas dever do poder público, como também da iniciativa privada.
Portanto, permitir que o poder público penalize empresas que se comprometem com maior ambição ambiental viola a Constituição e coloca em risco o equilíbrio ambiental, as metas climáticas e a credibilidade do agronegócio nacional perante o mercado externo que demanda por produtos livres de desmatamento.
[1] A decisão aguarda referendo do Plenário do STF. Em 30.05.2025, foi iniciado o julgamento no plenário virtual do referendo da medida cautelar da ADI 7774. Em 02.06.2025, o Ministro Dias Toffoli, Relator da ADI 7775, pediu vista do processo e o julgamento foi suspenso.
[2] Moratória da Soja. O Acordo. 2024. Disponível em: https://moratoriadasoja.com.br/home#the-agreement. Acesso em: 05.06.2025.
[3] SEEG, Análise das emissões de gases de efeito estufa e suas implicações para as metas climáticas do Brasil, 2024. Disponível em: https://seeg.eco.br/wp-content/uploads/2024/11/SEEG-RELATORIO-ANALITICO-12.pdf . Acesso em: 05.06.2025