O pai, o filho e o pastor no indiciamento dos Bolsonaro e de Malafaia

O novo indiciamento de Jair Messias Bolsonaro, de seu filho Eduardo Bolsonaro e do pastor Silas Malafaia (Inq 4995[1]) não é apenas um episódio jurídico ou político: trata-se de um choque frontal com marcos civilizatórios mínimos que sustentam a ordem democrática.

As mensagens apreendidas — em que o filho desrespeita o pai, o pastor articula apoio internacional para blindar os investigados e todos convergem para sabotar a jurisdição constitucional do Supremo Tribunal Federal — expõem uma escalada que ultrapassa crimes comuns e toca os fundamentos da família, da fé e da soberania.

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Ao longo deste texto, percorremos dois eixos convergentes: a violação do respeito filial, consagrado desde a mitologia clássica até o mandamento cristão e a tentativa de instrumentalizar o púlpito como escudo, afrontando a linha divisória entre Igreja e Estado. No fim, conclamamos os cristãos autênticos, os democratas convictos e todos aqueles comprometidos com valores éticos universais a separar o joio do trigo: rejeitar o fanatismo religioso, e reafirmar que fé e família não podem ser corrompidas como álibi para conspirações contra a Constituição e a nação, em corrosão ao Estado democrático de Direito.

1) A desconstrução da narrativa de perseguição

É necessário, de início, desmontar a falsa narrativa de perseguição que vem sendo reiteradamente alardeada pelos investigados. Jair Bolsonaro, seu filho Eduardo e seus aliados não estão sendo alvo de uma cruzada política, mas sim do curso regular de uma persecução penal instaurada a partir de indícios concretos de sua participação em atos antidemocráticos. Trata-se, portanto, de processo legítimo, conduzido sob a égide do Estado de Direito, e não de arbitrariedade.

Enquanto centenas de cidadãos comuns já cumprem pena por sua participação direta nos atentados contra a democracia, a cúpula mandante e articuladora desses delitos permanece tentando escapar à responsabilização, mesmo sendo estruturalmente responsável pela deflagração e continuidade das investidas golpistas. O que se observa agora é a atuação deliberada dessa elite dirigente no sentido de buscar apoios internacionais e subterfúgios jurídicos para evitar, a todo o custo, que o Supremo Tribunal Federal possa exercer sua função de julgar e, se for o caso, condenar os verdadeiros mandantes.

Importa ressaltar que impedir o curso regular do processo legal, obstruir a justiça e tentar inviabilizar o cumprimento de penas já previstas em lei configuram crimes autônomos. Os denunciados, insatisfeitos com o fracasso da tentativa de golpe, persistem em uma escalada criminosa cujo objetivo é um só: impedir a todo custo que os autores intelectuais arquem com suas responsabilidades, mesmo que isso implique sacrificar a soberania nacional e as instituições democráticas.

As mensagens recentemente recuperadas pela Polícia Federal, bem como o pedido de asilo político do ex-presidente Bolsonaro à Argentina, expõem de forma cristalina que não se tratava de conjecturas, mas de plano real de fuga e subversão da ordem constitucional.

2) O contraste entre 2016 e 2025 e a fragilidade do casuísmo

A segunda premissa é o contraste histórico-institucional. Em 2016, escutas telefônicas envolvendo conversas entre a então presidente Dilma Rousseff e Jorge Messias (o atual advogado-geral da União conhecido à época como “Bessias”) foram divulgadas sem a devida autorização do STF pelo então juiz Sergio Moro, hoje senador.

Essa divulgação — ilegal e espetacularizada — serviu de base para uma decisão liminar do ministro Gilmar Mendes que suspendeu a posse de Lula como ministro-chefe da Casa Civil. A decisão, tomada a partir de provas de legalidade duvidosa, contrariou precedentes e atravessou a relatoria precedente do ministro Teori Zavascki, na Operação Lava Jato.

A decisão foi o passo decisivo para a prisão do ex-presidente (então defendido pelo advogado Cristiano Zanin, posteriormente guindado a ministro do STF), tirando Lula da corrida eleitoral e placitando a candidatura e eleição de Jair Bolsonaro em 2018. À época, Eloisa Machado de Almeida e eu caracterizamos esse movimento como “incomum, raro, inusual” no manejo processual do contencioso constitucional[2].

Em 2025, temos um cenário diametralmente oposto, ainda que alguns personagens centrais se repitam. As apreensões de celulares, documentos e mensagens envolvendo Jair Bolsonaro, Eduardo e Silas Malafaia derivam de inquérito regularmente instaurado pela Procuradoria-Geral da República, com mandados judiciais expedidos pelo STF e medidas cautelares referendadas em colegiado.

Entre elas, a apreensão do passaporte de Malafaia, a proibição de deixar o país e de manter contato com outros investigados, assim como a análise das mensagens que revelaram o pedido de asilo político de Jair Bolsonaro à Argentina e o papel ativo do pastor como articulador político.

Esse contraste revela a essência do problema: em 2016, os mesmos setores que hoje clamam por garantias ficaram silentes — ou mesmo aplaudiram. Aceitou-se que um consórcio entre o então procurador Deltan Dallagnol e um juiz de primeira instância usurpasse a competência do Supremo, que provas questionáveis pautassem decisões monocráticas e que a espetacularização midiática substituísse o rito judicial adequado.

Agora, em 2025, quando todas as salvaguardas constitucionais estão sendo rigorosamente observadas — inquérito, mandado, autorização judicial, controle colegiado — justamente para se evitar a repetição dos erros do passado recente, querem tachar de perseguição o exercício da jurisdição constitucional.

Essa dissonância ultrapassa a contradição, beirando o casuísmo. Quando o alvo era Lula, aceitou-se a quebra da legalidade. Quando o alvo é Bolsonaro e sua cúpula, exige-se que fiquem acima da lei, mesmo diante do incontestável ataque e depredação violenta do STF. Mas não há democracia possível se a lei serve para uns e não serve para outros. O Estado democrático de Direito se mede pela uniformidade de tratamento, previsibilidade e segurança jurídica: quem conspirou contra a Constituição deve responder — pouco importa se veste toga, se porta mandato ou se se oculta atrás de púlpitos.

Os fatos recentemente revelados — mensagens, tentativas de evasão e articulações internacionais — evidenciam a pertinência das medidas cautelares determinadas pelo STF e posteriormente confirmadas pelo colegiado. Embora tenham sido alvo de críticas, inclusive da Ordem dos Advogados do Brasil, tais providências mostraram-se necessárias para assegurar a efetividade da jurisdição e a regularidade do processo penal.

O contraste é nítido: se em 2016 verificou-se um uso distorcido de instrumentos excepcionais, em 2025 observa-se a aplicação legítima e proporcional desses mecanismos. A crítica desprovida de coerência revela-se, nesse contexto, como manifestação de casuísmo, pois quem não contestou a arbitrariedade anterior carece de consistência para questionar a legalidade presente.

3) As mensagens reveladas: Eduardo, Jair e Malafaia em trama articulada

As mensagens recuperadas pela Polícia Federal revelam uma trama articulada que envolve Eduardo, Jair e o pastor Malafaia — uma rede de conluio que mistura relações familiares, tentativa de fuga e mobilização religiosa com fins conspiratórios.

Em uma das mensagens que compõem o relatório final da PF, Eduardo desferiu ao pai um xingamento gravíssimo, transbordando desrespeito e tensão: “VTNC, seu ingrato do caralho” foi uma das expressões chulas utilizadas pelo filho para agredir o pai.

Em outro trecho o deputado federal licenciado escreveu, em tom agressivo e desequilibrado: “Me fudendo aqui! Você ainda me ajuda a se fuder aí!… Se o imaturo do seu filho de 40 anos não puder encontrar com os caras aqui, porque você me joga pra baixo, quem vai se fuder é você. E vai decretar o resto da minha vida nesta porra aqui”.[3]

Essas mensagens não são mero desabafo emocional — estão inseridas em contexto de articulação política. O desabafo agressivo aponta que Eduardo via o próprio pai como obstáculo à sua estratégia, mesmo em momento de crise institucional.

Jair Bolsonaro, por sua vez, aparece associado em tentativas concretas de fuga da jurisdição brasileira. Um documento — a minuta de pedido de asilo político à Argentina — circulava entre seus apoiadores e foi apreendido no celular do ex-presidente. Esse fato confirma que não se tratava de rumor, mas de um plano articulado para impedir a responsabilização penal no Brasil.

Silas Malafaia, sua vez, aparece como peça-chave dessa engrenagem conspiratória. A PF aponta que o pastor atuou como “orientador e auxiliar” na estratégia de coação e disseminação de narrativas falsas[4]. Sua colaboração incluía comunicação direta com Eduardo e Jair, e ele mesmo os atacou em mensagem ao ex-presidente: “Esse seu filho, Eduardo, é um babaca… Inexperiente…”[5] — revelando que sua participação não era apenas institucional, mas também sinalizava tensões e posicionamentos fortemente críticos e coniventes ao mesmo tempo.

Esse conjunto de elementos revela:

Desrespeito filial extremo (Eduardo);
Tentativa de obstrução processual via fuga (Jair);
Instrumentalização religiosa de forma consciente e estratégica (Malafaia).

Esses aspectos não são isolados. As mensagens recuperadas pela PF revelam um conluio claro e reiterado entre Eduardo, Jair e o pastor Silas Malafaia. Longe de meros diálogos privados, tratam-se de planos articulados para criar resistência internacional, desacreditar o Supremo Tribunal Federal e tentar inviabilizar a persecução penal que atinge a cúpula mandante dos atos antidemocráticos.

O primeiro aspecto revelador é a linguagem de Eduardo em relação ao próprio pai. O filho, em vez de tratar Jair Bolsonaro como figura de autoridade e referência familiar, demonstra desrespeito e impaciência, chegando a tratá-lo como um obstáculo a ser administrado dentro da estratégia política. Esse detalhe, embora possa parecer de ordem pessoal, ganha relevo porque se conecta a uma índole de deslealdade mais ampla: se não respeita sequer o pai, como respeitará as instituições democráticas?

O segundo aspecto é a tentativa de fuga e de blindagem internacional. Entre as mensagens, emergem planos para que Jair Bolsonaro buscasse asilo político na Argentina, confirmando que havia estratégia deliberada de escapar do alcance da jurisdição brasileira. Esse dado torna ainda mais evidente o acerto das medidas cautelares de apreensão de passaporte e restrição de deslocamento, já confirmadas pelo colegiado.

Por fim, destaca-se o papel de Silas Malafaia como articulador religioso e político. Não se limitando a aconselhar espiritualmente, o pastor atua como operador político ativo, fomentando narrativas de perseguição e incitando a ideia de que eventual condenação de Jair Bolsonaro significaria perseguição à fé evangélica. Essa tentativa de converter o púlpito em escudo de imunidade é não apenas juridicamente inadmissível, mas também teologicamente insustentável, pois deturpa os próprios fundamentos do cristianismo.

Esses três vetores — o desrespeito filial de Eduardo, a tentativa de fuga de Jair e a manipulação religiosa de Malafaia — delineiam os eixos seguintes de análise. De um lado, a questão civilizacional do respeito aos pais (pater familias). De outro, a necessidade de fixar limites claros entre religião e responsabilidade penal: o púlpito não pode ser transformado em abrigo para criminosos.

4) O respeito filial como baliza civilizacional insuperável

O desrespeito de Eduardo Bolsonaro para com o próprio pai, revelado nas mensagens recentemente apreendidas, não é apenas um episódio doméstico ou familiar. Ele toca uma das linhas mais profundas e insuperáveis da moralidade humana: o respeito aos progenitores como fundamento da vida em sociedade.

A gravidade civilizatória do desrespeito filial não é uma invenção moderna nem exclusiva do cristianismo. Desde a mitologia grega, a ruptura entre gerações aparece como sinal de desordem primordial: Urano, Cronos e Zeus encenam, em cadeia, o filho que se volta contra o pai, quebrando o eixo da autoridade que sustenta o cosmos e a pólis. Esse imaginário não é mero mito: ele prepara o terreno normativo pelo qual as sociedades passam a tratar o atentado ao pai como ofensa máxima à comunidade.

No direito romano, essa intuição se torna regra: o parricidium — o crime contra o pai (e parentes próximos) — foi alçado a delito máximo, com pena específica e antiquíssima, a poena cullei (o condenado era costurado em um saco com animais e lançado às águas). A mensagem é inequívoca: tocar no pai é tocar no fundamento da ordem; por isso, a resposta jurídica é excepcional.

Entre mito e norma, a tradição trágico-jurídica dá o passo institucional. Em Eumênides, de Ésquilo, Orestes (que mata a mãe em vingança pelo pai) é julgado em Atenas; o empate é desfeito pelo voto de Atena (Minerva) — o célebre “voto de Minerva”. Ali, o conflito filial deixa a esfera da vendeta e entra na jurisdição pública colegiada: nasce o símbolo de que questões que ferem o núcleo familiar são assunto de justiça, não de privatismo violento.

Essa linha pré-cristã é retomada e transversalmente reforçada pela tradição judaico-cristã. A Lei mosaica estabelece o mandamento com promessa:

Honra teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor, teu Deus, te dá.” (Êxodo 20:12)

Honra a teu pai e a tua mãe, como o Senhor, teu Deus, te ordenou, para que se prolonguem os teus dias e para que te vá bem na terra…” (Deuteronômio 5:16)

Jesus o reafirma frontalmente: “Deus ordenou: Honra a teu pai e a tua mãe; e: Aquele que maldisser a seu pai ou a sua mãe certamente morrerá.” (Mateus 15:4)

E Paulo o consolida como “o primeiro mandamento com promessa”: “Honra a teu pai e a tua mãe — que é o primeiro mandamento com promessa —, para que te vá bem e vivas muito tempo sobre a terra.” (Efésios 6:2–3)

Portanto, do mito à lei e da lei ao evangelho, forma-se um fio contínuo: o respeito filial é baliza civilizacional insuperável. À luz desse percurso, a linguagem de Eduardo Bolsonaro contra o próprio pai — no contexto de uma trama que busca obstruir a justiça — não é um “excesso verbal”.

É sinal de degradação moral e institucional: quem rompe o vínculo elementar da honra filial revela disposição para romper, também, os limites que protegem a comunidade política. Em termos clássicos e bíblicos, desonrar o pai é profanar o fundamento; em termos republicanos, é corroer o respeito às autoridades legítimas e à Constituição.

5) Púlpito não é imunidade: a manipulação da fé como escudo para crimes

As medidas cautelares de apreensão do celular de Silas Malafaia, a retenção de seu passaporte e a proibição de deixar o país, requeridas pela PGR e deferidas pelo STF, vêm no bojo das provas incriminatórias colhidas pela Polícia Federal, no Inq. 4995.

O quadro fático-probatório revela a gravidade de sua participação do pastor como articulador político-religioso no esquema de proteção a Jair e Eduardo Bolsonaro[6]. As mensagens expostas demonstram não apenas aconselhamento espiritual, mas efetiva atuação como operador de uma engrenagem destinada a deslegitimar o Supremo Tribunal Federal, mobilizar bases religiosas contra a persecução penal e buscar apoio internacional para evitar a responsabilização da cúpula golpista.

É neste ponto que se impõe um alerta fundamental: o púlpito não é imunidade. A condição pastoral não pode servir como escudo para a prática reiterada de crimes. Da mesma forma que políticos têm, por vezes, tentado transformar o mandato parlamentar e a imunidade legislativa em instrumentos de blindagem contra a responsabilização penal, também alguns líderes religiosos pretendem usar o mandato pastoral como barreira à aplicação da lei. Ambas as distorções são igualmente inadmissíveis e atentam contra a ordem constitucional e religiosa, ultrapassando os limites da laicidade e instrumentalização da fé.

Esse expediente é rejeitado em três dimensões:

Constitucional – O preâmbulo da Constituição de 1988 invoca a proteção de Deus e estabelece a construção de um Estado democrático destinado a assegurar “o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça”. Ao mesmo tempo, o art. 19 veda a confusão entre religião e poder público. A instrumentalização da fé como escudo rompe tanto com o espírito do preâmbulo quanto com a garantia da laicidade.
Bíblica – O próprio Jesus Cristo fixou a linha insuperável entre Estado e Igreja em: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22:21) e na Purificação do Templo (em Mateus 21:12-13). Ao separar as esferas, Jesus não apenas protegeu a fé da contaminação política, mas também impediu que o poder secular se escudasse em pretensões religiosas.
Moral – Transformar valores transcendentes em moeda de troca para ocultar ilícitos degrada a autoridade espiritual do ministério pastoral, banalizando o que deveria ser instrumento de edificação ética e não de manipulação política.

Ao lado do núcleo familiar, que é a primeira instituição a ser violada pelo desrespeito de um filho ao pai, a instrumentalização do púlpito representa a subversão da fé como valor comum civilizatório. Em ambos os casos, rompe-se com marcos éticos mínimos — um no campo privado da honra filial, outro no campo público da fé e do mandato pastoral.

Na Bíblia, Jesus foi cristalino ao separar os campos da fé e da ordem secular. A fronteira da laicidade do estado foi registrada nos três evangelhos (Mateus 22:21; Marcos 12:17; Lucas 20:25): “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Nessa resposta, não apenas silenciou a provocação dos fariseus, como estabeleceu uma baliza insuperável: o poder temporal e o poder espiritual não se confundem, cada qual deve se manter em sua esfera própria.

O limite a laicidade é reforçado e aprofundado em um segundo episódio de impacto ainda maior, narrado nos quatro evangelhos sinódicos (Mateus 21:12-13; Marcos 11:15-17; Lucas 19:45-46; João 2:13-16), a única passagem bíblica na qual Jesus é tomado pela ira, ao denunciar a instrumentalização da fé: a Purificação do Templo com a expulsão dos vendilhões.

Ao erguer o látego contra os mercadores que transformavam a casa de oração em “covil de ladrões”, Jesus denunciou não apenas a mercantilização da fé em sentido literal, mas toda deturpação que instrumentaliza o sagrado para fins outros que não a adoração a Deus. A unanimidade dos evangelistas na transmissão desse evento reforça seu peso civilizatório: trata-se de um ensinamento axial, que condena toda tentativa de usar a religião como escudo ou moeda política.

A reação do ministro André Mendonça, ao inverter o foco da jurisdição para o fundamentalismo religioso, sinalizando que a responsabilização de Malafaia poderia trazer “a ira dos evangélicos[7], ilumina a tensão entre fé e jurisdição. É relevante registrar que o ministro André Mendonça, em sua conta oficial no Instagram, continua a se autodenominar “pastor”, mantendo atuação pastoral ativa inclusive nas redes sociais.

Tal circunstância não é irrelevante à luz do art. 95, parágrafo único, I, da Constituição Federal, que veda ao magistrado o exercício de outro cargo ou função, salvo o de magistério. A exceção não abarca o pastoreio, mas apenas à docência acadêmica. A antecipação do posicionamento público do ministro Mendonça pode colocar em xeque a imparcialidade que deve reger a jurisdição constitucional. Nesse ponto, impõe-se refletir: ao manter-se simultaneamente como ministro da Suprema Corte e pastor ativo, não se cria uma zona de interseção imprópria entre o foro íntimo da fé e o foro público da jurisdição?

A imparcialidade, pedra angular da magistratura, exige que o juiz se desvista de si para vestir a toga, como impõe o Estado democrático de Direito. Persistir no exercício pastoral, especialmente em julgamentos que envolvem líderes religiosos, não apenas compromete a percepção de neutralidade, mas pode configurar incompatibilidade constitucional[8].

Assim como Minerva simbolizou o nascimento da justiça racional e Cristo separou César de Deus, cabe reafirmar que nem o mandato parlamentar nem o mandato pastoral podem servir como escudos de irresponsabilidade criminal. Ambos devem permanecer submetidos ao império da Constituição e aos limites ético-morais que fundamentam nossa convivência democrática. 

6) Convergência dos eixos: família, religião, política e a linha insuperável do Estado democrático de Direito

O desrespeito de Eduardo Bolsonaro ao próprio pai e a tentativa de instrumentalizar o pastorado por Silas Malafaia não são episódios isolados. Eles se entrelaçam como sintomas de uma mesma lógica corrosiva: a recusa em aceitar limites civilizatórios mínimos. De um lado, a violação do núcleo da família — o sagrado respeito filial, que atravessa mitologia, direito romano e tradição bíblica. De outro, a profanação da fé, transformada em escudo para delitos políticos. E, no plano político-institucional, a tentativa permanente de blindagem do mandato parlamentar ou pastoral como se fossem imunidades absolutas contra a lei.

Esses eixos convergem em um ponto crucial: o ataque à própria ideia de limite. Família, religião e política só sobrevivem se forem vividas dentro de balizas. Quando se rompe o respeito ao pai, quando se converte o púlpito em imunidade, quando se abusa das prerrogativas políticas para subtrair crimes ao julgamento, mina-se a base comum que sustenta a convivência democrática.

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É por isso que o Estado democrático de Direito surge como linha insuperável contra a barbárie. A Constituição de 1988 não é mero arranjo jurídico, mas um pacto civilizatório que fixa os marcos de nossa soberania e de nossa democracia. Ela não admite nem a tirania dos filhos contra o pai, nem a manipulação da fé contra a lei, nem o privilégio político como escudo absoluto.

O que se prenuncia no desrespeito paterno é a mesma lógica que, ampliada, ameaça a soberania nacional: a disposição de sacrificar valores universais e instituições democráticas em nome da autopreservação de um grupo ou de uma liderança. Contra isso, a resposta não pode ser tímida. É preciso convocar a sociedade, e em especial os verdadeiros cristãos, a separar o joio do trigo — distinguir fé autêntica de seitas políticas disfarçadas de religião, distinguir mandato de imunidade, distinguir família de conspiração.

A linha está traçada. Do outro lado dela não há liberdade, não há soberania, não há democracia — apenas a barbárie. O Estado democrático de Direito é, portanto, o último e insuperável bastião contra essa escalada, e nele deve se apoiar toda consciência moral, cristã, política e cidadã que não aceite a traição à pátria, à fé e à família.

[1] STF. STF envia à PGR relatório final da Polícia Federal sobre coação no julgamento de ação por tentativa de golpe: Ministro Alexandre de Moraes encaminhou documento da PF que atribui a Jair e Eduardo Bolsonaro a prática de crimes; ex-presidente tem 48 horas para prestar esclarecimentos. Disponível em https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/relator-envia-a-pgr-relatorio-final-da-pf-sobre-coacao-no-julgamento-de-acao-por-tentativa-de-golpe/. Acesso de 21 ago. 2025.

[2] MEDINA, Damares; ALMEIDA, Eloísa Machado de. A incomum decisão liminar de Gilmar Mendes. Nexo Jornal, São Paulo, 2016. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/a-incomum-decisao-liminar-de-gilmar-mendes. Acesso em: 21 ago. 2025.

[3] BBC BRASIL. Xingamentos, ironia e bronca: o que diálogos revelam sobre núcleo duro de Bolsonaro. Por Júlia Braun. Londres, 21 ago. 2025. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c5y2v2k4n6go. Acesso em: 21 ago. 2025.

[4] AGÊNCIA BRASIL. Moraes determina busca e apreensão contra Silas Malafaia. Agência Brasil, Brasília, 20 ago. 2025. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2025-08/moraes-determina-busca-e-apreensao-contra-pastor-silas-malafaia. Acesso em: 21 ago. 2025.

[5] CNN BRASIL. Malafaia chama Eduardo de “babaca” em mensagem a Bolsonaro, revela PF. CNN Brasil, 21 ago. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/malafaia-chama-eduardo-de-babaca-em-mensagem-ao-bolsonaro-revela-pf/. Acesso em: 21 ago. 2025.

[6] STF. A pedido da PF e com aval da PGR, Supremo determina medidas cautelares contra Silas Malafaia: De acordo com decisão do ministro Alexandre de Moraes, pastor evangélico está proibido de deixar o país e de se comunicar com Eduardo e Jair Bolsonaro. Disponível em https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-atende-pf-e-pgr-e-determina-busca-apreensao-e-medidas-cautelares-contra-silas-malafaia/. Acesso de 21ago. 2025.

[7] CNN BRASIL. André Mendonça alerta Hugo Motta e colegas sobre evangélicos contra o STF. CNN Brasil, 21 ago. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/andre-mendonca-alerta-hugo-motta-e-colegas-sobre-evangelicos-contra-o-stf/. Acesso em: 21 ago. 2025.

[8] É sintomático que, em vez de reforçarem os limites constitucionais entre fé e jurisdição, atores da cena jurídica tenham mimetizado a linguagem que mistura religião e função pública. O ministro Flávio Dino tem recorrido diversas vezes a citações bíblicas em votos no plenário do STF. O juiz da Suprema Corte não fala apenas em nome próprio, mas em nome da própria jurisdição constitucional, que se deve manter neutra. Do mesmo modo, o atual Advogado-Geral da União, Jorge Messias, da tribuna do plenário do STF, durante a sessão de abertura do segundo semestre do ano judiciário na sessão plenária de 1º de agosto de 2025, parafraseou o ministro Flávio Dino citando Isaías 32:17 e desejando que os ministros “ficassem com Deus”. Um gesto que pode soar cordial, mas que no plano institucional tensiona o princípio da laicidade, dissolvendo a fronteira entre fé e direito. Esses episódios mostram como se normalizou a retórica religiosa em espaços que deveriam preservar a distância rigorosa entre secular e espiritual. O risco é claro: quando ministros e autoridades recorrem a esse tipo de discurso, ainda que de modo bem-intencionado, acabam por legitimar a pretensão de que líderes religiosos também possam instrumentalizar o púlpito como escudo para práticas políticas ou mesmo ilícitas. Assim, o fanatismo religioso encontra brechas dentro do próprio sistema constitucional, corroendo a linha civilizatória que separa Estado e religião desde a Constituição republicana de 1891.

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