A relevância da questão federal e as funções do STJ

No último dia 14 de julho, a Emenda Constitucional 125, que instituiu a Relevância da Questão de Direito Federal Infraconstitucional para o Recurso Especial, completou três anos de sua promulgação pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado.

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No entanto, não se sabe exatamente como será implementada a metodologia da relevância no Superior Tribunal de Justiça, haja vista a necessidade de se aguardar a definição do Poder Legislativo a respeito da lei regulamentadora do novo § 2º do art. 105 da Constituição Federal. Há, contudo, algumas indicações apresentadas pelo STJ, a título de sugestão, na minuta de anteprojeto de lei de regulamentação da relevância da questão federal e na justificativa que acompanhou o texto entregue ao presidente do Senado em dezembro de 2022[1].

Nesses dois textos, há indicação de que o STJ pretende aproximar, no que for possível, o procedimento da relevância ao da repercussão geral, de acordo com o que se extrai da seguinte passagem da justificativa da minuta de anteprojeto (sem destaque no original):

A legislação brasileira historicamente estabelece filtros ou requisitos recursais para acesso aos tribunais superiores, a exemplo do criado pela Emenda Constitucional 45, de 30 de dezembro de 2004, que introduziu a repercussão geral para o recurso extraordinário, instituto que inspirou a criação da relevância da questão federal para o recurso especial.

Justamente por isso, esta proposta legislativa vale-se da experiência de 15 anos do Supremo Tribunal Federal na formação de precedentes em repercussão geral para regulamentar o art. 105, § 2º, da Constituição Federal, que introduziu o filtro recursal denominado de “relevância da questão federal infraconstitucional”, estando lastreada em disposições normativas consolidadas na prática processual, a fim de permitir a atuação semelhante nos dois tribunais superiores sob a competência recursal extraordinária. Espera-se que a opção facilite a compreensão dos institutos pelos profissionais do Direito.

Assim, o anteprojeto de lei contém inclusões e alterações no Código de Processo Civil em disposições que atualmente disciplinam os efeitos da sistemática da repercussão geral.

A opção do STJ de aproximar o procedimento da relevância da questão de direito federal infraconstitucional ao da repercussão geral vai exigir mudanças na prática processual e procedimental da corte. Como a minuta de anteprojeto, replica parte do que consta do CPC para a repercussão geral e a indicação da justificativa da minuta de o STJ se valer “da experiência de 15 anos” do instituto previsto para o recurso extraordinário, há uma grande tendência de que o STJ poderá implementar rotinas e procedimentos semelhantes às atualmente adotadas no STF[2].

Na prática do Supremo Tribunal Federal, é possível identificar que a forma escolhida para o procedimento da repercussão geral consiste na utilização de temas de repercussão geral, os quais nada mais são do que a divulgação organizada da questão jurídica submetida ao rito da repercussão geral e do processo paradigma escolhido[3].

Desse modo, com a formação de temas, o STF declara a sua posição, com o objetivo de que o ideal do precedente se concretize: complementar o ordenamento jurídico e formar pauta de conduta.

Quanto à metodologia, alerte-se, existem críticas da doutrina sobre a transformação dos tribunais superiores em “cortes de teses”, porque, ao reduzir as funções dos tribunais à formação de temas vinculantes, ocorreria, nessa visão, a assunção de uma atividade “normativa, burocrática e autoritária”[4].

A formação de temas em grandes quantidades, na percepção de Luiz Guilherme Marinoni, reduz de forma expressiva o “próprio significado de corte suprema, que, sem qualquer preocupação com o espaço de poder dos juízes e tribunais, impõe soluções puramente normativas para a solução dos casos”. Conclui o autor que a corte de teses “além de obviamente exercer uma função com pretensões burocráticas, adquire feição autoritária ao superar a abstração da lei e ao desconsiderar o espaço de manifestação dos Juízes e Tribunais, transformando-os em braços para a aplicação das suas normas” [5].

Com o devido respeito ao posicionamento apresentado, a prática que se avizinha é a de que a forma metodológica da relevância da questão de direito federal infraconstitucional se espelhará na atuação do Supremo Tribunal Federal justamente com ampla formação de temas e de teses.

Pela indicação apresentada pelo Superior Tribunal de Justiça, na justificativa da minuta de anteprojeto, ao lado do incremento de temas vinculantes de mérito, ocorrerá a formação de temas pela ausência de relevância, prática ocorrida no STF, por meio dos temas de ausência de repercussão geral.

Da mesma forma que o STF, em sua atuação extraordinária recursal, a definição do STJ em recursos especiais deve ser capaz de complementar o ordenamento jurídico, estabelecendo pautas de conduta para toda a sociedade, nas quais o precedente fixado deva ser capaz de prevenir demandas, com a absorção dos entendimentos pela sociedade, em especial nas hipóteses de litigiosidade de massa, muito identificadas em processos ajuizados contra a fazenda pública, os institutos de previdências público e privado, os bancos, as telefonias, os planos de saúde, entre diversos outros grandes litigantes.

Em outra vertente, o STF utiliza a repercussão geral com a prática do recurso extraordinário repetitivo, ainda que tal nomenclatura não seja utilizada no âmbito daquela corte. Assim, a formação de temas pela presença e pela ausência de repercussão geral é importante também para o controle da litigiosidade recursal extraordinária, conferindo, aos demais tribunais, a atribuição de dar a última palavra[6] em questões já submetidas ao rito especial da repercussão geral.

É especificamente nesse ponto que reside o principal aspecto de eficiência do rito da repercussão geral no Supremo Tribunal Federal, a qual poderá ser transportada para o Superior Tribunal de Justiça, permitindo o melhor balanceamento entre as funções do STJ como corte de precedentes e como corte de revisão.

Observa-se que a sistemática da repercussão geral inverteu a curva de recebimento de processos no STF e modificou a dinâmica dos gabinetes, alcançando, agora, após 17 anos de sua implementação, a números próximos de 3.300 recursos extraordinários e recursos extraordinários com agravo, no gabinete dos dez ministros da corte (uma média de 330 recursos para cada ministro)[7].

É importante frisar, ademais, que o número de processos recebidos no STF é reduzido a cada ano e que o STF refreou, ao percentual de 40%, o recebimento de recursos extraordinários e recursos extraordinários com agravo. Veja que, entre os anos de 2006 e 2024, com uma tendência até o ano de 2006 de continuidade de alta no recebimento, o STF saiu de 122.995 recursos recebidos e começou a diminuir o quantitativo, tendo, em 2024, recebido 54 mil recursos[8].

Com esse cenário apresentado no Supremo, não se busca justificar a atuação eficiente em números do tribunal, mas sim mostrar que a repercussão geral permitiu que o STF possua números mais próximos dos reais para a sua atuação como corte de precedentes. Mesmo sem contar, ainda, com números ideais, é fato a se comemorar que, nos dias atuais, o STF seja responsável por sua agenda em julgamentos de recursos extraordinários com repercussão geral.

Consequentemente, a utilização da experiência do STF na regulamentação da relevância da questão de direito federal infraconstitucional exigirá a maior formação de temas vinculantes no STJ, seja com o reconhecimento, seja com a recusa do requisito constitucional, propiciando o exercício, em última palavra, pelas instâncias de origem, e evitando a tramitação desnecessária de milhares de agravos em recursos especiais todos os anos.

Assim, é importante perceber que a redução de recebimento de recursos especiais e (principalmente) de agravos em recursos especiais pelo Superior Tribunal de Justiça será proporcional ao quantitativo de temas vinculantes emitidos pela corte superior. Logo, é previsível que não ocorrerá significativa redução de processos recebidos no STJ no primeiro ano de implementação da relevância da questão de direito federal infraconstitucional.

É possível, inclusive, que aconteça inicialmente apenas a estabilização no número de recebimento, uma vez que primeiramente é preciso estruturar um quantitativo de temas para, em ato sequencial, a redução do recebimento de recursos se efetivar.

A declaração sobre o posicionamento do STJ em precedentes qualificados – como provavelmente serão designados os acórdãos proferidos sob o regime da relevância da questão de direito federal infraconstitucional[9], representarão maior segurança jurídica ao sistema jurídico, pois, de forma metodológica e organizada em temas vinculantes, a corte responsável pela uniformidade da interpretação da lei declarará o seu posicionamento em questões de relevância para a sociedade brasileira.

Semelhante ao que ocorreu no STF, o procedimento da relevância da questão de direito federal infraconstitucional no STJ tende a ser uma atividade constante e não estanque, a exigir da corte, após a regulamentação por lei, a edição de normativos internos (Resolução e/ou Emenda Regimental), valendo-se muito da experiência dos anos da prática da repercussão geral.

Na Suprema Corte, foram objeto de muitas deliberações e debates, entre outras, situações relacionadas à recorribilidade nas instâncias de origem, à exigência da preliminar de repercussão geral, ao procedimento de análise do recurso extraordinário, ao cabimento da reclamação, ao plenário virtual, ao quórum de votação, ao procedimento da reafirmação de jurisprudência, à categorização de tema de ausência de repercussão geral ante a natureza da matéria infraconstitucional da questão jurídica.

São temáticas que provavelmente também deverão ser objeto de deliberação no STJ, e seus ministros contarão com um repleto repositório de práticas testadas e comprovadas pelo STF.

Assim, espera-se que, com a plena regulamentação da relevância da questão de direito federal infraconstitucional, o STJ inicie gradual e constante mudança de rumos em sua atuação.

Um dos principais desafios que se apresenta à corte será o de ampliar a sua atuação como corte de precedentes em meio ao elevado número de processos submetidos todos os dias aos ministros. Para isso, o STJ poderá investir em práticas que facilitem a formação de temas vinculantes, pela presença ou pela ausência de relevância da questão federal, alcançando, o quanto antes, proporcionalmente, os números apresentados atualmente pelo STF quanto à repercussão geral.

A conciliação na formação de temas vinculantes e na celeridade de julgamentos representará o diferencial da relevância da questão de direito federal infraconstitucional na prática do STJ, resultando na redução gradual, ano a ano, do número de recebimento de recursos especiais e de agravos em recursos especiais.

Dessa forma, espera-se que em poucos anos, o STJ, da mesma forma que atualmente ocorre no STF, possa assumir o controle da sua agenda de julgamentos. Com isso, diversas questões jurídicas que atualmente ainda ensejam discussões nos tribunais brasileiros estarão definitivamente decididas, não havendo necessidade na continuidade da litigiosidade desses casos[10].

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Há uma grande esperança na regulamentação do instituto e isso muito se justifica por uma conclusão que é compartilhada por todos os operadores do direito: a realidade atual do STJ não pode continuar, pois a elevada carga processual submetida à corte todos os anos a impede de exercer a sua principal função de corte de precedentes, prevalecendo a função de corte de revisão.

É preciso, portanto, balancear a sua atuação para que a função de corte de precedentes seja mais bem identificada nos julgamentos e, com isso, ocorram todos os efeitos decorrentes da formação de precedentes, seja no próprio Poder Judiciário, seja além dele, chegando as diretrizes do STJ às pessoas em suas relações comerciais, de família, tributária, previdenciária, criminal e diversas outras.

[1] Mesmo não sendo o detentor da iniciativa legislativa, o Superior Tribunal de Justiça elaborou minuta de anteprojeto de lei para regulamentar a relevância da questão de direito federal infraconstitucional e a entregou ao presidente do Senado no dia 5/12/2022, conforme noticiado pelo tribunal em seu site. Link para a notícia: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2022/05122022-STJ-entrega-ao-Senado-proposta-para-regulamentar-filtro-de-relevancia-do-recurso-especial.aspx, acesso em 31/7/2025.

[2] Em evento promovido pelo Superior Tribunal de Justiça em fevereiro de 2023, há diversas falas de Ministros e de especialistas abordando a proximidade entre a relevância da questão federal e a repercussão geral. Link: https://www.youtube.com/watch?v=2U_IqBKdKTs&t=6237s, acesso em 1º/8/2025.

[3] Na prática da repercussão geral e dos recursos repetitivos, os enunciados de temas são utilizados para, em numeração sequencial, informar os operadores de direito e toda a sociedade, quais são as questões jurídicas submetidas aos ritos qualificados. A figura de tema repetitivo está descrita no art. 121-A, § 2º, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça como sendo a forma de organização e de divulgação dos incidentes de assunção de competência e dos processos afetados para julgamento sob o rito dos recursos especiais repetitivos. Nessa mesma disposição regimental, explicita-se que os temas conterão “numeração sequencial, contendo o registro da matéria a ser decidida e, após o julgamento, a tese firmada e seus fundamentos determinantes”.

[4] Michele Taruffo, Un vertice giudiziario astratto, Il Anuario de la Facultad de Derecho de la Universidad Autónoma de Madrid, n. 22, 2018.

[5] MARINONI. Luiz Guilherme. Arguição de Relevância, São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 2023.

[6] A conclusão apresentada de que é conferida aos tribunais de segunda instância a última palavra sobre a aplicação da questão jurídica fixada em tema de repercussão geral decorre do art. 1.030, I e III, e § 1º, do Código de Processo Civil quando estabelece a possibilidade de negativa seguimento e juízo de retratação, com recorribilidade apenas para o próprio tribunal de origem, sem a possibilidade de agravo contra essas decisões para o STF.

[7] Painéis estatísticos do Supremo Tribunal Federal. Site Corte aberta. Link: https://transparencia.stf.jus.br/extensions/corte_aberta/corte_aberta.html, acesso em 31/7/2025. O quantitativo médio de 300 processos por gabinete se refere a processos que estavam conclusos aos Ministros no dia 31/7/2025, excluindo aqueles que, mesmo da relatoria do Ministro, encontravam-se em outras fases, tais como na Secretaria do Tribunal para providências, Ministério Público Federal, partes, etc. Os números detalhados são os seguintes: Gabinete do Min. Nunes Marques: 603, Gabinete do Min. Luiz Fux: 468, Gabinete do Min. Gilmar Mendes: 416, Gabinete do Min. André Mendonça: 370, Gabinete do Min. Cristiano Zanin: 292, Gabinete do Min. Alexandre de Moraes: 277, Gabinete do Min. Edson Fachin: 270, Gabinete do Min. Flávio Dino: 243, Gabinete do Min. Cármen Lúcia: 237, Gabinete do Min. Dias Toffoli: 148.

[8] Painéis estatísticos do Supremo Tribunal Federal. Site Corte aberta. Link: https://transparencia.stf.jus.br/extensions/corte_aberta/corte_aberta.html, acesso em 31/7/2025.

[9] Conforme previsto na minuta de anteprojeto de lei de regulamentação da relevância da questão de direito federal infraconstitucional, propõe-se a alteração do art. 927 do Código de Processo Civil para a inclusão do inciso “III-A – acórdão proferido em julgamento de recurso especial submetido ao regime da relevância da questão de direito federal infraconstitucional”, entre aqueles de observância obrigatória por juízes e tribunais

[10] MARCHIORI, Marcelo Ornellas Marchiori. A Atuação do Poder Judiciário na Formação de Precedentes Definitivos – experiências e desafios. São Paulo: Juspodivm, 2022.

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