Reflexões sobre o ‘ativismo judicial’

A expressão “ativismo judicial” é polissêmica e pode dar margem a confusões. Gosto, por vários motivos – a começar pelo peso acadêmico de seu autor, assim como por sua posição na mais alta Corte de Justiça do país – da definição de ativismo proposta pelo professor Luís Roberto Barroso, como uma participação mais ampla e intensa do Judiciário (…), com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes.

Proponho, contudo, uma definição mais direta para o fenômeno e, talvez, mais realista ou pragmática: o ativismo judicial consiste na interpretação livre e não mensurada de princípios e de conceitos jurídicos indeterminados, bem como de sua “ponderação” em casos concretos que permitem o afastamento textual de regras contratuais e legais.

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Trata-se, em última análise, de escolhas de sentido interpretativo politicamente orientadas, mas não explicitadas nem sujeitas a escrutínio público. Assim, por exemplo, o contrato diz “x”, mas, pela boa-fé objetiva, julgo “y”; a lei diz “z”, mas, pelo princípio da dignidade humana, julgo “w”.

Na prática, essa postura significou a assunção, pelo Judiciário, de um papel de protagonista na formulação de políticas públicas e na definição de parâmetros normativos, extrapolando o exercício clássico da jurisdição. E não por culpa dele próprio. Certos fenômenos sociais não têm culpados; são processos históricos que têm suas causas, mas também geram consequências.

Certamente, a prevalência de certas visões ideológico-políticas não reveladas sobre o papel do Estado nas universidades contribuiu para isso, especialmente com a proliferação de cursos de pós-graduação no país (a maioria deles focados, não surpreendentemente, em Direito Público). Mas este não é o momento nem o espaço para discutir o papel das universidades em nossa pobreza de ideias.

O fato é que essa expansão do poder interpretativo do Judiciário, capaz de afastar o texto das regras, em vez de reforçar a proteção de direitos, acabou criando um ambiente de insegurança jurídica, com impactos diretos no desenvolvimento econômico.

Do ponto de vista da Análise Econômica do Direito (AED), as consequências são evidentes: quanto maior o espaço interpretativo e a incerteza sobre a aplicação das normas, maiores os custos de transação. Investidores e agentes econômicos passam a incorporar um “prêmio de risco jurídico” em suas decisões, retraindo investimentos, reduzindo empregos e encarecendo o crédito.

Os números ajudam a dimensionar esse problema. Segundo o relatório Justiça em Números do CNJ (2024), o custo anual do Judiciário já alcança R$ 132,8 bilhões, equivalente a 1,2% do PIB. Em 2016, havia cerca de 79,7 milhões de processos em tramitação, ou 0,52 processos per capita (52.530 para cada 100 mil habitantes), proporção muitíssimo superior à dos países desenvolvidos.

Esse excesso processual gera decisões conflitantes, o abarrotamento das cortes superiores e custos diretos e indiretos aos agentes econômicos. Além do gasto do contribuinte para sustentar a máquina judiciária, há o custo financeiro para empresas e cidadãos em se defenderem, bem como o custo econômico mais difuso da incerteza. Estudo de Sherwood (2004) estimou que, se o Judiciário brasileiro tivesse desempenho equivalente ao de países desenvolvidos, o Brasil poderia registrar +14% em investimentos, +12% em empregos e +18% em vendas.

O caso do setor aéreo é emblemático: estima-se que a judicialização custe cerca de R$ 1 bilhão por ano às companhias, sendo que parte substancial de todas as ações indenizatórias contra empresas aéreas no mundo está no Brasil.

Os planos de saúde são outro exemplo trágico de afastamento de regras regulatórias e contratuais com base em princípios de elevada vagueza semântica. Na área trabalhista, nem se fala.

Trata-se de um exemplo claro de como o ambiente litigioso e a insegurança jurídica se convertem em perda de competitividade e de eficiência econômica porque, no caso do setor aéreo, acabamos impedindo o surgimento de empresas de baixo custo (low cost) e, no de saúde suplementar, concentrando o mercado para fazer frente à elevada judicialização. No caso trabalhista, restringimos as liberdades econômicas e a flexibilização da economia.

Em suma, o ativismo judicial, longe de fortalecer a democracia ou assegurar direitos de forma eficaz, acabou por gerar distorções sistêmicas: excesso de litigiosidade, sobrecarga da Justiça, custos para o contribuinte e entraves ao desenvolvimento econômico.

A experiência brasileira mostra que é necessário reequilibrar o papel do Judiciário, restabelecendo a centralidade das regras legais e contratuais e limitando o espaço para interpretações expansivas que corroem a previsibilidade essencial à economia. Sem falar da própria legitimidade democrática para tal atuação estatal – discussão para outro momento (afinal, será que a Constituição deu esses poderes interpretativos “mágicos” à magistratura do texto constitucional?).

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O local para começar esse movimento de autocontenção judicial é nas universidades, mas a baixa diversidade ideológica nas linhas de pensamento faz com que esse trabalho tenha de ficar a cargo da sociedade civil. Caberá a ela mostrar ao Judiciário as consequências de suas decisões, e a este caberá levar a sério a necessidade de ponderação pragmática de efeitos na aplicação de princípios jurídicos, como determina expressamente a Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro.

O papel do Judiciário na economia é tão importante quanto na política. Seu compromisso constitucional não é apenas com a democracia (e, de novo, talvez falte legitimidade democrática ao ativismo), mas também com o desenvolvimento econômico (que vem por uma economia de mercado).

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