MP que afeta fintechs pode gerar insegurança e frear investimentos estrangeiros

A Medida Provisória 1.303/2025, enviada pelo governo ao Congresso como alternativa ao decreto que elevou as alíquotas do Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro ou relativas a Títulos ou Valores Mobiliários (IOF) para determinadas operações, foi tema de debate nesta quinta-feira (14) na Casa JOTA, em Brasília.

No evento patrocinado pelas associações brasileiras de Fintechs (ABFintechs), de Instituições de Pagamento (Abipag) e de Internet (Abranet), a presidente do Conselho Consultivo da Abranet, Carol Conway, observou que as mudanças podem alterar de forma prática a trajetória do mercado de pagamentos e serviços financeiros no Brasil. 

Ela lembrou que o Brasil foi pioneiro em criar uma lei (12.865/2013) para segregar a atividade de armazenamento de moedas e criação de contas digitais da atividade de serviços financeiros e concessão de crédito, o que ela interpreta como fundamental para expandir e posicionar o Brasil neste meio, tornando o país referência em sistemas de pagamento.

“Todo esse orgulho do país vem dessa expansão que temos como certo, mas precisamos nos perguntar: queremos que toda atividade de armazenamento do nosso dinheiro e de pagamentos seja restrito aos bancos? Queremos equiparar essas atividades e limitar e voltar para a idade média?”, questionou.

Gabriel Cohen, conselheiro da Abipag, levantou a questão da inovação no setor financeiro e de pagamentos  e a impossibilidade de dissociá-la da entrada de capital estrangeiro no país, que tem um papel central para o fomento do desenvolvimento desses setores. O especialista lembrou que dados do Banco Central mostram que, independentemente da jurisdição, dezenas de bilhões de dólares entram anualmente no Brasil. Isso impacta diretamente o cotidiano dos consumidores, estabelecimentos comerciais e pessoas físicas e jurídicas.

Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA

“Nesse contexto, é importante que o texto da MP seja convergente com essas iniciativas de aprimoramento do setor financeiro a partir de novas tecnologias dos últimos anos”, destacou. Além disso, Cohen também pontuou que, diferentemente de uma instituição financeira, as instituições de pagamento não utilizam os recursos dos clientes para financiar suas atividades. Isso porque elas possuem escopo de atividades muito restrito. Assim, o acesso aos serviços de pagamento estaria dissociado da figura bancária. 

CSLL e o setor de fintechs

O presidente da ABFintechs, Diego Perez, afirmou que a equiparação das alíquotas da CSLL entre bancos e fintechs, a tributação de criptoativos e captação via mercado de capitais, traz riscos significativos. Para ele, o ponto central é a equiparação de atores que têm realidades muito diferentes que podem encarecer o custo de captação dessas empresas.

Perez explicou que as as fintechs operam com margens menores, atuam em nichos de inclusão e inovação e não têm a mesma estrutura de receitas dos grandes bancos. Elevar a CSLL para o mesmo patamar de grandes bancos, na visão dele, significa reduzir a capacidade de investir em novos produtos, ampliar a base de clientes e, no fim, manter a competitividade.

“Há fintechs que desenvolveram um único produto e tem que competir com grandes estruturas que têm múltiplos produtos e conseguem compensar eventualmente a baixa rentabilidade de um com os ganhos excessivos em outros e as fintechs acabam tendo suas margens muito apertadas, comprimidas, fazendo com que alguns modelos de negócios se tornem inviáveis”, afirmou. 

Lembrou ainda da importância das fintechs no desenvolvimento tecnológico do país, com participação nos testes de pix e open finance, e que a MP pode atrasar os avanços. 

Perez acrescentou que a medida vem em um momento de consolidação de diversos modelos de negócio que podem ser afetados de forma desproporcional e pediu que o Congresso possa convidá-los a participar mais ativamente das discussões.

Naira Trindade; Gabriel Cohen, da Abipag; e Carol Conway, da Abranet. Foto: Felipe Costa Ferreira de Carvalho/JOTA

O professor Heleno Torres, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), afirmou que, caso a proposta seja aprovada do jeito que está, quem paga é a sociedade. O acadêmico disse ser preciso avançar com os aprimoramentos do sistema tributário brasileiro e que as atividades financeiras não podem fugir desse debate, mas que falta um debate mais aprofundado sobre o tema. 

“O artigo 195 da Constituição Federal é muito objetivo ao autorizar que as contribuições sociais tivessem alíquotas diferentes em razão da atividade econômica, do porte da empresa, ou da condição estrutural do trabalho”, comentou o professor. Para Torres, o cerne da discussão é estarmos diante de atividades econômicas distintas, uma vez que não é possível comparar o que as fintechs realizam, com a atividade dos bancos. 

“As fintechs não fazem intermediação financeira e não têm uma atuação de risco, como os bancos possuem; atuam, portanto, em um segmento muito diferenciado”, disse o professor, ao explicar que a legislação veda expressamente que as fintechs possam exercer a função de intermediadoras financeiras. Isso demonstraria uma diferenciação que justifica as alíquotas diferentes em razão de suas atividades. 

Torres destacou que outros critérios para alíquotas progressivas são possíveis, mas devem focar na carga tributária. Alertou também que a medida terá impacto na cadeia de investimentos e que o Congresso pode trabalhar junto com o BC e a Fazenda para soluções. “A hora de debater é essa”, defendeu. 

O deputado federal Cláudio Cajado (PP-BA) criticou a proposta ao dizer que o intuito do governo é apenas aumentar a arrecadação, lembrando da reação do Congresso sobre o IOF e alertando que o governo tem focado apenas na arrecadação. “Prejudica o setor que demonstra eficiência e justiça para os mais necessitados, porque as fintechs atendem ao microempresário, a população de baixa renda com custos que não se equiparam aos bancos”, pontuou.

Além da inconstitucionalidade, o parlamentar disse que a medida penaliza um setor que atende a população de baixa renda e compromete o trabalho das fintechs. Segundo ele, o discurso do governo de que está taxando os mais ricos para beneficiar os pobres acaba, na verdade, tendo um efeito contrário.

“É um erro grave e espero que na comissão que analisa essa MP possa ser corrigido. […] Se não dermos um basta aqui, daqui a dois a três meses teremos mais projetos de carga tributária. Na minha opinião, o Congresso deveria ser ativo e dizer: ‘não vamos votar e esperar caducar’.”

Mesmo assim, o parlamentar sugere que a MP seja desidratada a começar por uma possível progressividade, além de dar mais incentivos à inovação. Ainda, ponderou que é preciso dar atenção aos cortes de gastos.

Tributação de investidores não residentes

Um dos focos da discussão foi a proposta de fixar em 17,5% a alíquota do Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) sobre rendimentos de aplicações financeiras para investidores estrangeiros, e 25% quando o investidor estiver sediado em jurisdição com regime de tributação favorecida, substituindo a tabela regressiva aplicada até então.

A pesquisadora do Núcleo de Estudos Fiscais da FGV Lina Santin contextualizou que a MP traz uma medida de tributação diferente para investidores em países de tributação favorecida.  

Segundo ela, a ideia da MP é aplicar retenção de 17,5% para residentes ou domiciliados no exterior e, no caso de investidores sediados em países com tributação favorecida, uma retenção de 25%. Para Lina, “há uma quebra do tratamento isonômico entre investidores estrangeiros em condições semelhantes e também entre o capital nacional e o estrangeiro”. 

A pesquisadora avalia que o desafio dessa alteração está na lógica de diferenciar o capital que investe no Brasil conforme a jurisdição, sem confundir essa regra com o imposto retido na fonte sobre remessas ao exterior — este, sim, pode ser usado para coibir planejamentos abusivos. “A medida está sendo aplicada de forma totalmente distorcida para capital estrangeiro que está vindo trazer desenvolvimento ao Brasil” avaliou.

Naira Trindade; Cláudio Cajado (PP-BA); Diego Perez, da ABFintechs; e Heleno Torres, da USP. Foto: Felipe Costa Ferreira de Carvalho/JOTA

Santin também aproveitou para alertar que mudanças nas alíquotas de CSLL podem reduzir investimentos, desenvolvimento e arrecadação, especialmente em instituições de pagamento (IPs) e sociedades de crédito (SCFIs), cujas atividades diferem das dos bancos. 

“Isso é realmente um cálculo matemático”, afirmou, ressaltando a necessidade de estudos econômicos para avaliar os impactos. “É necessário que se olhe essas distorções para que eu não coloque do mesmo lado atividades distintas e desestimulem todo esse processo.” 

O presidente da Abrasca, Pablo Cesário, Cesáreo pontuou que empresas e investidores não fazem as regras, mas as cumprem. Ele alertou para os desdobramentos dos efeitos constitucionais, tanto para investidores nacionais quanto internacionais com relação à MP. “Sobre o investimento estrangeiro, o Brasil tem crescido como um dos locais de maior investimento. O nome desse jogo é confiança: estabilidade das regras, saber como vou investir e quando vou retirar esse recurso”, pontuou, acrescentando que o país precisa dar essa estabilidade para manter os recursos no país.

Ele lembrou da Lei de Capitais, editada em 1996, que isentou investimentos estrangeiros e atraiu muito mais capital. Destacou que 50% dos recursos de financiamento vêm do exterior, mas que uma fuga de investimentos estrangeiros já teria começado. “Isso sim [acabar com essa previsão] é uma ameaça real para deixar de atrair investimentos para o Brasil”. destacou.

O deputado federal e relator da MP, Carlos Zarattini (PT-SP), destacou que a medida surgiu de um contexto de necessidade fiscal após a derrubada do decreto do IOF e lembrou que foi um acordo amplo, inclusive com os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. 

Mas que, para além de arrecadar, o governo também se comprometeu com a revisão de gastos tributários que estão avançando no Congresso. Ele também destacou que o governo vem reduzindo despesas e que as metas fiscais foram todas cumpridas, e afirmou que ajustes vêm sendo discutidos há algum tempo. Reconheceu que o foco está no fechamento das contas, mas também na correção de distorções.

Ele explicou que as novas medidas são de médio prazo e beneficiarão principalmente o pequeno aplicador, reduzindo a alíquota e atraindo mais recursos para as aplicações. “Vamos equilibrar as decisões, buscando atrair investimentos. Já avançamos no Ministério da Fazenda em alguns pontos”, disse. 

Zarattini também afirmou que o governo pretende, com a MP, igualar a tributação entre os diferentes setores. Ele destacou que as discussões envolvem recursos provenientes de paraísos fiscais, que não são tributados nos países de origem, buscando uma equivalência ao que já é aplicado internacionalmente.

“Tivemos uma série de audiências públicas, inclusive com o ministro Fernando Haddad. Vamos ouvir outros setores, como pescadores, que têm uma medida polêmica em relação ao seguro-defeso, além do setor financeiro e de infraestrutura. É um conjunto de questões que vamos buscar conhecer em todos os detalhes e aprofundar”, disse.

Ele reconheceu que não é especialista do mercado financeiro e que não possui conhecimento profundo, mas se comprometeu a conversar com quem está “com a mão na massa” e, ao mesmo tempo, buscar uma maioria para aprovação da MP.

Frisou que não fará mudanças abruptas, mas buscará consenso. Segundo ele, o relatório deve ser apresentado por volta do dia 15 do mês que vem, com maioria suficiente para aprovação. Ele afirmou não ver nenhum movimento para que a MP caduque, nem por parte do presidente da Câmara, nem da maioria dos partidos, embora reconheça que sempre haja opiniões mais radicais. 

“Estamos ouvindo o mercado e as entidades para ver se é possível calibrar melhor sem perder o objetivo de arrecadação. A ideia é entregar um relatório que equilibre arrecadação e competitividade, especialmente para setores estratégicos”, disse.

O senador Efraim Filho (União-PB) ponderou sobre o risco à atratividade do Brasil para investimentos voltados à inovação e tecnologia. Para ele, o país não pode dar “um sinal errado” ao investidor estrangeiro. Ele destacou que a questão dos gastos tributários foi pouco debatida, mas que a medida arrecadatória avançou e tem consequências imediatas. “A decisão do governo está equivocada e, além de arrecadar mais, vai inibir investimento.”

De acordo com Efraim, o investidor estrangeiro olha para a carga tributária, assim como para a estabilidade das regras. Se a mudança for percebida como aumento de custo ou como insegurança, pode afetar diretamente o volume de capital para startups, fintechs e setores de tecnologia. O parlamentar fez referência principalmente à Emenda 158 à Medida Provisória, proposta por ele para buscar uma solução para o desafio.

Segundo o senador, o investidor pensa que vai ser mais caro investir no Brasil e corre para outros países. “É melhor ter 50% de algo do que 100% de nada”, disse. “Quem é residente no Brasil vai escolher se investe lá fora ou aqui, agora quem está fora, em um sistema sem tributo, vai querer pagar mais caro? Vai buscar outros lugares que dirão: seja bem-vindo. Esse é o grande problema político. É importante ter a regra do jogo previsível. Quem investe quer um governo que gasta com responsabilidade e gera confiança.”

Casa JOTA cheia para assistir o evento MP 1.303/2025 competitividade e inovação para inclusão financeira. Foto: Felipe Costa Ferreira de Carvalho/JOTA

Ele explicou que a melhor lógica é favorecer o aplicador de longo prazo, pois isso dá oportunidade de maturar diversos setores estratégicos, como saneamento, transporte, energia e construção civil, que absorvem o capital que chega. “O setor público não gera, mas consome riqueza. Quem gera riqueza é o setor privado. O setor privado paga tributos para gerar políticas públicas”, frisou.

O caminho da MP 1.303/2025

Em maio, o governo editou um decreto elevando as alíquotas do IOF para determinadas operações financeiras. Após manifestações contrárias em massa, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, reuniu-se com os presidentes da Câmara e do Senado, além de líderes partidários, para discutir alternativas de compensação de receitas. Ficou definido o envio da MP 1.303/2025 e o compromisso do governo de apresentar uma proposta de revisão de 10% dos gastos tributários.

O Congresso derrubou o decreto, mesmo com o acordo feito entre o Legislativo e Executivo, mas a medida foi restabelecida com ressalvas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) após recurso do Executivo. 

O relator, deputado Carlos Zarattini, pretende apresentar o relatório até outubro, prazo final para que a MP seja convertida em lei. Até lá, o texto pode receber alterações para mitigar impactos sobre competitividade e inovação, ponto destacado por representantes do setor privado e por parlamentares durante o evento na Casa JOTA.

Em linhas gerais, a MP 1.303/2025 estabelece:

Equiparação da CSLL cobrada de fintechs à das instituições financeiras tradicionais;
Unificação em 17,5% da alíquota de IRRF sobre rendimentos de aplicações financeiras para investidores estrangeiros, e de 25% quando esses investidores estiverem sediados em jurisdições com regime de tributação favorecida;
Simplificação de regras e harmonização de dispositivos tributários aplicados ao mercado financeiro.

Assista ao evento na íntegra:

Generated by Feedzy