Estamos juntos. Ou a justiça é cega?

“A justiça é cega, mas não é tola!”

Com essas palavras, em caixa alta e com múltiplos pontos de exclamação, o ministro Alexandre de Moraes respondeu, jurisdicionalmente, à saudação feita por Jair Bolsonaro, por videochamada, a uma multidão reunida em Copacabana:

“Boa tarde, Copacabana. Boa tarde, meu Brasil. Um abraço a todos. É pela nossa liberdade. Estamos juntos”.

Embora o caso se desenrole no âmbito de uma ação penal, está longe de ser estritamente técnico ou racional.

É simbólico. É político. Só depois, jurídico.

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A frase do ex-presidente foi interpretada como novo descumprimento das medidas cautelares impostas semanas antes, levando à decretação de prisão domiciliar com monitoramento eletrônico, por decisão publicada nesta segunda-feira (4/8).

O episódio tem origem em 18 de julho, quando o ministro Moraes impôs a Bolsonaro uma série de restrições: uso obrigatório de tornozeleira eletrônica, proibição de acesso às redes sociais, vedação de contato com o próprio filho (Eduardo Bolsonaro) e buscas e apreensões em sua residência.

A justificativa apresentada foi a alegada tentativa de obstrução da Justiça, por meio de articulações com o governo norte-americano, mais especificamente com Donald Trump, atual presidente dos Estados Unidos.

A decisão, ao menos formalmente, ancora-se na lógica tradicional do processo penal: toda medida cautelar exige a demonstração de fumus comissi delicti (indícios de prática delitiva) e periculum libertatis (risco à instrução, à ordem pública ou à aplicação da lei penal).

Trata-se de exigência elementar do sistema processual penal reiterada pela doutrina e pela jurisprudência há décadas.

O problema (e ele não é pequeno, até pela própria divergência aberta pelo ministro Luiz Fux na 1ª Turma do STF) reside na forma como esses requisitos foram concretamente aplicados.

O suposto risco de fuga, apontado como periculum libertatis, decorre das relações de Eduardo Bolsonaro com autoridades norte-americanas, das quais se extrai, de maneira indireta, uma intenção futura de evasão do país.

O fumus comissi delicti, por sua vez, repousa sobre dois elementos principais: o apoio político declarado por Trump a Jair Bolsonaro e a adoção de tarifas econômicas retaliatórias ao Brasil, supostamente articuladas como forma de protegê-lo da persecução penal em curso no Supremo Tribunal Federal.

Ambos os fundamentos permanecem, até o momento, no campo da especulação.

A articulação internacional, ainda que retoricamente agressiva e plenamente criticável, não pode ser atribuída com segurança à vontade ou ao comando direto de Jair Bolsonaro… goste-se ou não dele!

Mais grave ainda é o fato de que, neste caso específico, utilizar manifestações de política externa como suporte para medidas cautelares internas parece inaugurar um precedente excessivamente perigoso.

Isso porque atos soberanos de outros países (sobre os quais o investigado não detém qualquer controle direto comprovado) passam a produzir, por inferência, efeitos restritivos à liberdade individual no território nacional, sem que haja a necessária demonstração de vínculo subjetivo concreto entre a conduta do réu e os riscos alegados.

E se a controvérsia já era acentuada desde a imposição das cautelares, a decretação de prisão domiciliar como reação a uma fala simbólica eleva o conflito à sua máxima tensão.

A rigor, a prisão domiciliar sequer é prevista como consequência automática do descumprimento de medida cautelar, muito menos cabível de ofício, sem provocação da Polícia Federal ou requerimento da Procuradoria-Geral da República.

Já não se trata mais apenas de cautela processual, a única hipótese juridicamente aceitável para a imposição de restrição à liberdade antes do trânsito em julgado.

Trata-se de um recado de poder.

Mas gostemos ou não do réu, há algo mais essencial em jogo.

Ainda existia, até pouco tempo atrás, a compreensão de que o Poder Judiciário não deveria se confundir com instância de contenção político-policial.

Ainda havia a lembrança de que o devido processo legal é composto por um bloco normativo denso, estruturado sobre garantias essenciais, entre elas a imparcialidade do julgador.

E esse conjunto de garantias deve valer até para aqueles que se opõem à democracia.

Seja ele… Jair Bolsonaro.

E por mais paradoxal que pareça, essa crítica não se faz por… Jair Bolsonaro.

Ela se faz por todos os acusados que respondem a ações penais simples, no Fórum da Barra Funda, em São Paulo, ou no antigo Fórum Lafayette, em Belo Horizonte, onde este advogado iniciou sua trajetória.

Não se deve subestimar o efeito simbólico de uma atuação ostensiva por parte de um ministro do Supremo Tribunal Federal. Decisões assim são observadas, replicadas, normalizadas.

O que hoje se justifica como exceção, diante de um réu de forte carga política e midiática, amanhã servirá de referência para o juiz da comarca que julga o cidadão comum, sem imprensa, sem influência, sem rede de proteção.

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Aos penalistas atentos, vale recordar o impacto duradouro de viradas jurisprudenciais que, sob o pretexto de combater a corrupção, fragilizaram garantias fundamentais.

A interpretação alargada da teoria do domínio do fato no caso do mensalão, por exemplo, ainda hoje serve de base para imputações frágeis em processos cotidianos.

Da mesma forma, as delações premiadas e as medidas cautelares convertidas em prática ordinária no contexto da Operação Lava Jato elevaram de forma preocupante a temperatura do termômetro do processo penal brasileiro.

Devemos ter medo de juízes, já dizia um juiz, com todo respeito aos juízes.

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