Com o avanço do mercado de tokenização, muito se discute o papel de figuras tradicionais no mercado financeiro e essenciais para a segurança, garantia e guarda de ativos na negociação e pós-negociação de valores mobiliários. Refiro-me especialmente às figuras do escriturador, custodiante e do depositário central.
Para problematizar e repensar o papel destes participantes nos novos formatos de tecnologia e mercado, vale retornarmos à base. A distinção de atividades entre tais participantes pode gerar dúvidas, especialmente no cenário atual de inovação e integração tecnológica e diante do surgimento de novas classes de ativos.
Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas
Ainda me lembro dos primeiros anos de carreira (ou há nem tanto tempo assim…), batendo cabeça para entender por que era necessário alinhar com tantas pontas diferentes uma mesma transação. Em outras palavras, porque uma transação passa na mão de muitas pontas até sua liquidação, todas envolvendo o cumprimento de diversas obrigações, envio de informações e procedimentos operacionais. Vamos juntos desenhar essa not so yellow brick road.
Lá estávamos em 2013. Foram inúmeras medidas tomadas pelo mercado em âmbito global como resposta à crise de 2008, incluindo a publicação de sugestões de padrões internacionais para infraestruturas de mercado, os Principles for Financial Market Infrastructures (ou PFMIs) pela CPSS e IOSCO.
Tratamento mais detalhado foi dado às figuras de infraestrutura de mercado com a edição da Lei 12.810/13, que previu a o depositário central, atribuindo à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) a competência normativa sobre o assunto.
A fim de acompanhar os movimentos do mercado, a CVM lançou a Audiência Pública 06/13 e, por consequência, introduziu as Instruções CVM 541, 542 e 543, ainda em 2013. Substituiu-se, assim, a falecida Instrução CVM 89/88, que regulava a prestação de serviços de ações escriturais, de custódia de valores mobiliários e de agente emissor de certificados.
Pois bem, a partir desse marco regulatório, tais participantes passaram a ter papéis mais definidos e se distinguir entre si.
A figura do depositário central, hoje regulada pela Resolução CVM 31/21, fica responsável pela guarda centralizada dos valores mobiliários emitidos a mercado, pelo controle da sua titularidade fiduciária, e também por fazer valer eventuais ônus ou direitos atribuídos. Em outras palavras, o depositário central funciona como espécie de cartório dos valores mobiliários, com o controle da propriedade, assegurando a imposição de gravames e viabilizando o pagamento de dividendos. Sua relação é concentrada com a infraestrutura de mercado, responsável pela liquidação dos ativos, envolvendo também o escriturador e o custodiante.
O escriturador, de maneira similar ao depositário, é responsável pelo registro da titularidade dos valores mobiliários, e também por registrar os direitos e gravames dos ativos. Este serviço é prestado, tradicionalmente[1], por uma instituição financeira, regulado pela Resolução CVM 33/21. Ele compõe as atividades do depositário e do custodiante, fazendo controle de titularidade e atuando no tratamento de eventos dos valores mobiliários, sendo um importante gatekeeper.
Neste relacionamento com o depositário, obtém as informações sobre os negócios realizados no mercado organizado, trivial para a conciliação das posições dos investidores. Mas seu principal relacionamento é com o emissor do ativo, que é quem o contrata. De certo modo, o escriturador é, em essência, o livro de registro de ações da companhia. Tem a visão total da conjuntura dos valores mobiliários do emissor.
O custodiante (regulado pela Resolução CVM 32/21), por sua vez, é a ponte entre o investidor, o depositário central e o escriturador. É ele quem intermedia a relação da conta individualizada do investidor no depositário, com a conta sob sua custódia. É responsável pelo controle e a conciliação diária das posições do investidor nestas contas, garantindo que os ativos, direitos e obrigações do investidor estejam devidamente registrados em todas os ambientes necessários. É também o responsável por confirmar os comandos de compra e venda de seus clientes, assim como manter as informações de clientes atualizadas junto ao depositário central e ao escriturador.
As instituições financeiras, que atuam como corretoras, assessores de investimento e financiadores, são os mesmos que também prestam os serviços de custódia de valores mobiliário e muitos deles, também os de escrituração, desde que autorizados pela CVM para exercício de tais atividades, o que pode muitas vezes embaralhar os papéis exercidos por tais entidades.
Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA
Feitas as devidas introduções, vamos desenhar: eu ligo para meu corretor e peço para ele comprar 10 ações do Flamengo (totalmente hipotético, mas podemos sonhar). Meu corretor é também meu custodiante, que vai lá e aperta o botão no mercado de bolsa para comprar as 10 ações. Depois de todo o processo de negociação e liquidação (podemos falar disso numa próxima oportunidade), essa informação bate no depositário central. Ele registra as 10 ações do Flamengo no meu nome, na minha conta individualizada que ele controla por lá, enquanto quem me vendeu estas ações deixa tê-las.
O escriturador, em paralelo, recebe essas informações e atualiza o livro de registro de ações do Flamengo nos sistemas dele. Agora, tenho 10 ações do Flamengo – guardadas pelo meu custodiante – e essa informação é conhecida pelo depositário central e pelo o escriturador (e, por sua vez, pelo Flamengo). Assim deve permanecer até eu decidir me desfazer delas (já me apeguei, talvez nunca me desfaça).
Depois de desenhar, vale a provocação: com o avanço nas tecnologias e modalidades de ativos hoje surgindo, há demanda por inovação e aprimoramento no âmbito do mercado de capitais, mas também uma preocupação sobre o papel destes participantes nos novos formatos de negociação.
Os processos de inovação do mercado e, consequentemente, de renovação da regulação são cíclicos e constantes – e uma leitura da AP 06/13 nos permite concluir que não faz muito tempo que questionamos o papel destes players. A CVM, mesmo com toda a limitação orçamentária e de pessoal, tem demonstrado proatividade e comprometimento em manter esse movimento de avanço e inovação, à exemplo da instituição do sandbox regulatório, entre outras medidas.
O abandono dos mercados tradicionais não parece estar no horizonte, mas sabemos que a inovação movimenta nossa existência. O papel de participantes como custodiantes, escrituradores e depositários já se transformou ao longo do tempo no mercado e parecem estarem sendo questionados no âmbito das novas tecnologias que surgem, que é o caso da “distributed ledger technology” – o DLT.
O uso desta tecnologia de blockchain permite que um único administrador da rede – o depositário – concentre as atividades essenciais dessas diversas pontas hoje assumidas por outros intermediários, sendo capaz de identificar a origem dos valores mobiliários nela emitidos, realizar a movimentação de ativos e o controle de sua titularidade por meio do uso de chaves privadas e contas individualizadas – as wallets. Em razão da própria natureza da tecnologia, a atividade de conciliação talvez sequer seja necessária.
No entanto, há desafios no uso do blockchain, como o tratamento de valores mobiliários que não sejam nato-digitais[2], a asseguração de sigilo de informações de operações realizadas na rede, ou o alto custo em deter os recursos tecnológicos e humanos mínimos, entre outros, que podem contar com intermediários parceiros importantes para preencher estas possíveis lacunas.
Assim, vemos que, com a chegada de novas tecnologias como o DLT e o que mais o blockchain poderá apresentar, é possível que chegue também um novo ciclo de transformações em seus papéis e responsabilidades. É sabido que este movimento já está na mira do regulador, que esperamos mudanças dos resultados da sua agenda regulatória, que demonstra a intenção em desenvolver um mercado de tokens, um mercado de acesso e um mercado competitivo – a exemplo da proposta da 135 Light – e com tantos outros projetos em constante andamento.
[1] Requisito este flexibilizado pela Lei nº 14.430/22, que alterou a Lei das S.A., permitindo que a CVM pudesse autorizar outras entidades, que não instituições financeiras, a prestar serviços de escrituração. A Laqus recentemente obteve autorização para a atividade de escrituração com base em tal flexibilização, vide a Decisão do Colegiado da CVM de 2 de julho de 2024, no âmbito do Processo CVM 19957.012349/2022-37.
[2] Ativos nato-digitais são os valores mobiliários emitidos originalmente na rede de blockchain, ou seja, que não existiam previamente a serem inseridos na rede. A título de exemplo, o token de uma ação PETR4 não seria um ativo nato-digital, enquanto o Bitcoin sim.