O Marco Civil da Internet nasceu, em 2014, como resposta brasileira à incerteza jurídica que dominava o ciberespaço desde a virada do milênio. Fruto de um processo legislativo anunciado como exemplar — aberto, participativo, envolvendo múltiplos setores sociais, acadêmicos e empresariais —, o MCI foi, à época, saudado como a “Constituição da internet brasileira”, definindo princípios claros, direitos fundamentais e diretrizes de responsabilidade, reconhecendo a rede como espaço central para a vida pública, a democracia e o exercício de liberdades.
No coração desse novo pacto digital estava o artigo 19, símbolo de uma promessa: ninguém, nem mesmo as gigantes da tecnologia, poderia restringir arbitrariamente a liberdade de expressão.
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Inspirado no modelo do “safe harbor”, o artigo estabelecia um escudo normativo: plataformas só poderiam ser responsabilizadas civilmente por danos causados por conteúdos de terceiros se, e somente se, descumprissem uma ordem judicial específica de remoção. Era uma escolha consciente: proteger o debate público da censura privada e garantir que só o Estado, mediado por um juiz, poderia restringir o discurso, sempre após análise individualizada do caso.
Essa opção não foi casual. Antes de 2014, a ausência de critérios claros gerava um ambiente caótico. Plataformas removiam conteúdos preventivamente para se blindar de ações judiciais, resultando em censura privada, exclusões sumárias e insegurança para os usuários. O Marco Civil buscou romper com esse cenário, apostando que a mediação judicial seria a melhor salvaguarda para um ecossistema digital plural, aberto ao contraditório, mas atento aos direitos individuais.
Sob o pretexto de proteger o exercício da liberdade de expressão, o artigo 19 foi desenhado para uma internet muito diferente da atual. No entanto, a realidade, sempre mais complexa do que os melhores projetos de lei, mudou o jogo.
As redes sociais digitais explodiram, algoritmos tomaram conta das conversas e, com eles, cresceram também comunidades tóxicas, ataques coordenados, perfis falsos e uma enxurrada de desinformação. O cenário ficou especialmente tenso após episódios como os de 8 de janeiro de 2023, quando a democracia balançou e o país inteiro se perguntou: quem, afinal, deve responder por tanto caos digital?
Alguns críticos afirmam que o Congresso, atolado no impasse do PL das Fake News, assistiu a tudo de camarote — ou, para ser justo, travado por interesses contraditórios e uma disputa surda sobre até onde deve ir a regulação.
O processo de captura no Congresso é tamanho que, a título de exemplo, as plataformas chegaram a contratar o ex-parlamentar relator do Marco Civil da Internet para representar seus interesses nas comissões temáticas. Nesse vácuo, coube ao STF protagonizar o próximo capítulo, transformando uma crise regulatória em palco para um embate que define o destino da esfera digital brasileira.
O Judiciário começou a enxergar, cada vez mais, uma nova realidade: o modelo de “porto seguro” transferia o ônus do controle do dano para as vítimas e para o Estado, enquanto as empresas monetizavam o tráfego, independentemente do impacto social dos conteúdos disseminados.
Dois casos paradigmáticos traduziram esse dilema e escalaram a crise para o Supremo Tribunal Federal. O primeiro, conhecido como “caso Facebook” (RE 1037396), envolveu a criação de um perfil falso, utilizado para ofensas e fraudes. A vítima notificou extrajudicialmente a empresa, que nada fez; só a ordem judicial surtiu efeito, já com o dano consumado.
O segundo, o “caso Orkut” (RE 1057258), também pautou-se pela inércia da plataforma diante de uma comunidade criada para difamar uma professora. O pano de fundo dos dois processos era o mesmo: até que ponto a exigência de ordem judicial específica era compatível com a necessidade de proteção célere e efetiva contra violações flagrantes de direitos na internet?
O julgamento do artigo 19 não foi um simples duelo jurídico. Foi, na verdade, a tradução das ansiedades, esperanças e medos de um país diante do colapso das fronteiras entre o exercício da liberdade e responsabilidade. A maioria dos ministros apontou que, diante dos riscos atuais, não dava mais para esperar o Legislativo. Eles defenderam um regime mais dinâmico, capaz de dar resposta rápida a violações graves, como ameaças à democracia e ataques aos direitos fundamentais.
O modelo híbrido que emergiu da decisão mistura o rigor do Judiciário com a velocidade das notificações extrajudiciais: agora, em casos graves, a plataforma pode ser responsabilizada se, notificada, não agir — tudo isso sem depender de ordem judicial, salvo quando se trata de crimes contra a honra.
Mas também houve vozes dissidentes. Três ministros defenderam que uma mudança tão estrutural caberia exclusivamente ao Congresso, alertando para os riscos do ativismo judicial e da transferência de um poder de censura às próprias empresas. Não mencionaram a captura dos legisladores. Uma terceira via, intermediária, também foi proposta: preservar a ordem judicial para a honra, mas impor às plataformas um dever de cuidado imediato diante de outros ilícitos graves.
O veredito estabeleceu um novo paradigma, provisório, porém importante. Para e-mails, grupos privados e crimes de honra, a regra antiga persiste. Mas para conteúdos como nudez não consentida, material envolvendo crianças e atentados à democracia, o padrão de exigência foi elevado: as plataformas devem ser proativas, sob pena de responderem por sua inação.
A decisão também foi taxativa sobre anúncios pagos e bots: a responsabilidade da plataforma é presumida se conteúdos ilícitos forem impulsionados, a menos que prove ter agido com a máxima diligência. Vitória para a democracia e uma derrota importante para a circulação de desinformação.
Essa nova arquitetura regulatória impõe obrigações inéditas: relatórios de transparência, canais de denúncia eficientes e a nomeação de um representante legal no Brasil. Politicamente, a decisão do STF foi um divisor de águas. Para uns, um ato necessário para preencher uma omissão legislativa perigosa. Para outros, puro ativismo judicial, ferindo a separação dos poderes.
Os impactos econômicos e tecnológicos já se anunciam. As big techs como Google e Meta expressam receio quanto à “insegurança jurídica” e ao custo de monitoramento, alimentando o fantasma do “overblocking” — a remoção preventiva de conteúdo legítimo para evitar riscos legais. Para startups, o desafio é ainda maior, com o risco de a conformidade se tornar uma barreira que favoreça a concentração de mercado.
A decisão da Suprema Corte funciona, assim, como um “ultimato institucional” duplo. manda um recado para o legislativo, convenientemente omisso, e para as big techs, que circulavam conteúdos conspiratórios. Um destes chegou a ser tema de discussão entre os ministros, como revelaram jornalistas da GloboNews. O ministro Nunes Marques teria sugerido que a decisão sobre o art. 19 do Marco Civil caminhava para a instalação de uma “crise internacional” com um risco de “interferência internacional” sobre a jurisdição brasileira.
Segundo a apuração, essa afirmação teria gerado indignação do decano. Mais do que qualquer arquitetura de poder, a simples menção dessa narrativa por um ministro do Supremo revela o poder da desinformação e a capilaridade que ela pode tomar, mudando os rumos de políticas públicas e orientando decisões não pelo justo, mas pelo medo.
Voltando ao mérito da decisão, é importante lembrar que o novo regime é provisório, mas o padrão foi deslocado para um modelo de dever de cuidado ampliado, invertendo o ônus da inércia legislativa. O Legislativo agora terá que agir para não perder definitivamente a prerrogativa de regular a esfera digital. Mais do que uma disputa sobre quem vai “dizer o direito”, é sobre quem vai “dizer o poder”.
A decisão do STF sobre o artigo 19 do Marco Civil da Internet não só redefine a responsabilidade das plataformas e os mecanismos de combate à desinformação, como também evidencia um novo capítulo de disputa política e jurídica pela arquitetura da esfera pública digital no Brasil. É uma guerra de narrativas. O desafio central, agora, é equilibrar proteção de direitos, segurança democrática e liberdade de expressão, evitando tanto a omissão regulatória quanto o excesso de intervenção.